O CINEMA DE DAVID LEAN

maio 16, 2011

Representante de uma geração de classicistas – da qual também fizeram parte William Wyler, George Stevens e Fred Zinnemann – Sir David Lean pode ser considerado o supra-sumo de todos os profissionais de Cinema.

Dotado de notável intuição fílmica e delicadeza de sentimentos, ele era um inspirado contador de histórias, de temperamento romântico, que adornava seus filmes com requinte visual e perfeição técnica, imprimindo-lhes o sopro artístico.

Por causa de seu perfeccionismo, realizou apenas 16 filmes e logrou o respeito e a admiração dos seus pares e do público. Fazendo Cinema nos moldes tradicionais (“Gosto de uma boa história , bem consistente, com começo, meio e fim. A maioria dos filmes novos parecem diários. Não têm construção dramática. E devo dizer que gosto de uma boa construção dramática. Gosto de me emocionar quando vou ao cinema”) com afinco (“Se você quiser ser diretor, tem que ter espírito prático. É trabalho árduo , como o de um carpinteiro e quando termino um filme, estou absolutamente exausto”) e humildade (“Só agora comecei a ter a ousadia de pensar que tenho algo de artista”), Lean construiu uma carreira modelar marcada por uma inflexível busca de qualidade.

David Lean nasceu em Croydon, Surrey, Inglaterra a 25 de março de 1908, filho de Francis Williams Le Blount Lean e Helena Annie Tangye e foi educado  numa rígida disciplina quaker na Leighton Park School, perto de Reading. Após um currículo escolar sem grandes méritos, abandonou os estudos, indo trabalhar com aprendiz do pai, contador juramentado; mas achou o ofício insuportável. Sempre que podia, refugiava-se no cinema local, onde se entusiasmava com os filmes silenciosos americanos, impressionando-se fortemente com Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse / The Four Horsemen of the Apocalypse / 1921 e Mare Nostrum / 1926, ambos de Rex Ingram, diretor que admirava.

Em 1927, aos 19 anos, candidatou-se a um emprego nos estúdios Gainsborough, sendo contratado  por um período de experiência, sem receber salário. Um de seus primeiros  encargos foi o de segurar a claquete (primeira intervenção em Quinneys de Maurice Elvey), passando sucessivamente  a assistente de câmera e 3º assistente de direção. Lean queria aprender tudo e começou a assistir ao trabalho na sala de montagem. Ele aprendeu muito com o chefe do departamento de montagem, o americano Merrill White, que havia sido montador de Ernst Lubitsch em Hollywood.

Em 1930, Lean foi nomeado montador-chefe da Gaumont Sound News, transferindo-se, no início de 1931, para a British Movietone News. Nos meados da década voltou aos filmes de ficção e, depois de participar de algumas produções modestas e de três filmes bastante populares estrelados por Elizabeth Bergner  – Contudo és Meu / Escape Me Never / 1935, Como Gostais / As You Like It / 1936 e Lábios Pecadores / Dreaming Lips / 1937, todos dirigidos por Paul Czinner -, havia se tornado o montador mais bem pago da Inglaterra.

Sua reputação subiu ainda mais em 1938, quando funcionou em Pigmalião / Pigmalion do húngaro Gabriel Pascal, baseado na peça de Bernard Shaw e co-dirigido por Anthony Asquith e Leslie Howard. Um ano depois, esteve de novo com Asquith em Caçador de Corações / French Without Tears, adaptação da comédia de Terence Rattigan, e, subsequentemente, montou importantes filmes britânicos dos anos 40 como Major Barbara / Major Barbara / 1941, Invasão de Bárbaros / The 49th Parallel / 1942 e Um Avião Não Regressou / One of Our Aircraft is Missing / 1942. No começo da guerra, fez amizade com Ronald Neame, o fotógrafo de Major Barbara, em quem encontrou grande afinidade. “Nós acreditávamos que a câmera poderia conduzir a atenção dos espectadores para onde quisesse. Usávamos, Neame e eu,  a mesma linguagem, comum ao montador e ao cameraman”.

Lean recebeu várias propostas para dirigir filmes, todo eles “quota quickies”. Este foi o caminho que Michael Powell havia seguido e ele chegou ao topo rapidamente. Porém Lean rejeitou-os, temendo que a participação em filmes inferiores prejudicasse a sua carreira.

A oportunidade de dirigir surgiu, quando o produtor criativo Filippe Del Giudice persuadiu o consagrado teatrólogo das comédias sofisticadas e revistas musicais borbulhantes, Noel Coward, a realizar um filme para a sua companhia, Two Cities.

Coward escolheu Ronald Neame para diretor de fotografia e, por sugestão do produtor-associado, Anthony Havelock-Allan, entregou a David Lean – o melhor técnico que havia no cinema inglês – o cargo de diretor-associado.

A produção intitulou-se Nosso Barco, Nossa Alma / In Which We Serve / 1942 e narrava, em estilo semi-documentário, tom patriótico e com pano de fundo social, a história de um destróier da Marinha Britânica, o “H. M. S. Torrin”, desde a sua construção até seu torpedeamento durante a Segunda Guerra Mundial, e dos homens que nele serviam. O relato começava pelo afundamento do navio e então se concentrava  em três membros da tripulação – o Capitão Kinross (Noel Coward), o Imediato Walter Hardy (Bernard Miles) e um marujo, Shorty Blake (John Mills) -, quando eles se agarravam aos destroços no mar cheio de óleo e recordavam em retrospecto suas vidas a bordo, suas esposas (Celia Johnson, Joyce Carey e Kay Walsh) e familiares em Plymouth.

Com pouca vivência cinematográfica, Coward produziu, escreveu (reservando para si mesmo vários discursos emocionantes dirigidos à tripulação), interpretou e compôs a música do filme. Na elaboração do argumento, inspirou-se nas experiências pessoais do amigo Lord Mountbatten (o incidente envolvendo o marinheiro tomado de pânico – Richard Attenborough em sua primeira intervenção na tela, não creditado – foi extraído de um fato real presenciado por Mountbatten) e na folha de serviços do “H. M. S. Kelly”, embarcação realmente naufragada na Batalha de Creta.

Lean dirigiu a maior parte das cenas (sobressaindo a sequência da retirada de Dunquerque, rodada com a assistência do operador de câmera Guy Green na segunda unidade) e também montou magnificamente o filme embora nos créditos apareça apenas o nome de sua assistente, Thelma Myers. A abertura,  mostrando num tratamento documentário a construção e o lançamento do “Torrin” foi filmada por Anthony Havellock-Allan e Ronald Neame no Hawthorne-Leslie Yard em Newscastle. A voz do narrador que se ouve no início e no fim do filme é de Leslie Howard.

Nosso Barco, Nossa Alma concorreu ao Oscar nas categorias Melhor Filme e Melhor Roteiro Original e recebeu um certificado especial da Academia “por sua notável produção”. Na Inglaterra, foi considerado o filme mais popular do ano e o Monthly Film Bulletin aclamou-o o “melhor drama de guerra produzido até então”.

O cineasta russo, Vsevolod Pudovkin, assim se manifestou: “É um trabalho esplêndido, irresistível, com sua bem estudada sinceridade. Um de meus camaradas achou-o profundamente nacional e concordo com ele. O filme é totalmente inglês. A gente pode ver a face da verdadeira Inglaterra nele”.

O segundo filme nascido da colaboração Coward / Neame / Lean / Havelock-Allan, This Happy Breed / 1944 (título oriundo de uma fala do personagem John of Gaunt em Richard II de Shakepeare) baseado na peça de Coward (autor também do roteiro e da música), marcou o início das atividades de uma nova produtora independente, a Cineguild, formada pelos quatro, e foi totalmente dirigido por Lean.

O enredo mostrava, através de vinhetas episódicas, o cotidiano num lar suburbano em Clapham entre as duas guerras, contrastado com os acontecimentos mundiais nesse período de tempo (entre eles uma greve geral e a abdicação de um rei). Era uma propaganda do estoicismo, do temperamento e do poder de recuperação do povo inglês, cobrindo várias décadas de uma família inglesa comum.

Lean já empregava neste filme um de seus artifícios prediletos, o  de “vazar” uma cena na outra – uma nova cena começava antes que a anterior tivesse desaparecido completamente. Ele especialmente usava o som para antecipar a próxima cena, mantendo o espectador num estado constante de expectativa.

O filme começava em 1919 com o plano geral dos telhados cinzentos de Londres e, em seguida, tendo como fundo sonoro a narração de Laurence Olivier, a câmera penetrava lentamente pela janela de uma casa, focalizando o instante em que os Gibbons (marido, mulher, três filhos adolescentes, a mãe viúva da mulher e a irmã solteirona do marido) estavam se instalando; vinte anos depois, a câmera saía pela mesma janela, quando a família deixava o local para nova residência.

Crônica familiar com acuradas observações sobre o modo de vida da classe média baixa inglesa, fotografada por Neame em Technicolor reticente e de tonalidade realista, e controlada com firmeza por Lean, evitando o sentimentalismo e o clima de teatro filmado, o filme foi um dos maiores êxitos de bilheteria na Inglaterra em 1944.

No elenco, interpretações calorosas, destacando-se Robert Newton / Frank Gibbons, Celia Johnson / Ethel Gibbons, Kay Walsh / Queenie Gibbons, John Mills / Billy Mitchell, namorado de Queenie e Stanley Holloway / Bob Mitchell.

A produção seguinte da Cineguild, Uma Mulher do Outro Mundo / Blithe Spirit / 1945, era a versão da peça de Coward sobre um romancista cínico, Charles Condomine (Rex Harrison) que, a fim de escrever um livro sobre espiritismo, convidava uma excêntrica médium, Madame Arcati (Margaret Rutherford), para uma experiência. Tudo o que esta conseguia era invocar o fantasma da primeira mulher do romancista, Elvira (Kay Hammond), para desalento da esposa atual, Ruth (Constance Cummings).

Esta alta comédia ectoplásmica, deveu muito aos romances de Thorne Smith, criador do personagem Topper, inúmeras vezes trazido para o Cinema e, tal como sua fonte inspiradora, possuía ingredientes para divertir o público. Lean usou alguns truques engenhosos nas cenas dos fantasmas (o filme ganhou o Oscar de efeitos especiais) e deu um polimento às imagens com o Technicolor, mas o filme, na sua maior parte, não escondia a origem teatral.

Segundo James Agee, Margaret Rutherford era a alma do filme: “Sempre que Margaret está na tela como a médium que inicia e tenta controlar a encrenca, o filme é admiravelmente engraçado”. De fato, a interpretação de Margaret no palco tinha se tornado lendária e ela recriou o papel da médium extravagante e incompetente com muita eficiência.

A introdução espirituosa que ouvímos em voz over é de Noel Coward. Segundo consta, ele não gostou do filme e se queixou com Lean dizendo-lhe à queima-roupa: “Você destruiu a melhor coisa que eu escreví”. O mundo de Uma Mulher do Outro Mundo não era o de David Lean. Em consequência, não foi um filme muito feliz. Entretanto, alguns anos depois, ele demonstraria seu senso de humor em  um outro tipo de comedia, Papai é do Contra.

Em Desencanto / Brief Encounter / 1945, o terceiro filme da Cineguild e um dos filmes britânicos românticos mais populares de todos os tempos, revelou-se com maior amplitude o talento individual de Lean. Baseado em Still Life, exemplar da série de dez peças curtas escritas por Coward em 1938 e reunidas sob o título geral de Tonight at 8.30, girava em torno de um homem, Alec Harvey (Trevor Howard) e uma mulher, Laura Jesson (Celia Johnson), ambos de meia-idade e casados, que se encontram casualmente numa estação ferroviária. O homem era médico e pai de dois garotos; a mulher também tinha dois filhos. O encontro inocente transforma-se em algo mais sério. Após alguns momentos de felicidade, os dois compreendem que o amor clandestino não pode continuar e concordam em se separar, voltando cada qual para seus respectivos companheiros.

Narrando o frustrado romance com muita sinceridade e sutileza, através de flashbacks e em espaços confinados (a sala de espera da estação, a casa de Laura, o cinema, o apartamento do amigo de Alec), Lean realizou uma obra-prima intimista, transmitindo, do ponto de vista da mulher, o sentimento de uma existência insípida, embora não infeliz, subitamente perturbada por algo fora de seu controle.

A melhor cena do filme (lindamente fotografado por Robert Krasker) é aquela  muito lembrada na qual Laura, tendo dado o adeus final ao médico, avança para perto da plataforma da estação com ímpeto suicida. Enquanto o trem apita estridentemente e passa, as luzes do vagão refletem-se expressionisticamente  na sua face agoniada. Como tema do fundo musical, o Segundo Concerto para Piano de Rachmaninoff servia para incrementar o impacto emotivo.

Lean recebeu uma indicação para o Oscar de Melhor Diretor e outra, juntamente com Coward e Havelock-Allan, para o de Melhor Roteiro. Celia Johnson foi apontada para Melhor Atriz e arrebatou um Prêmio dos Críticos de Cinema de Nova York.  Em Cannes, o filme levou o Prix International de Critique.

No elenco, além de Celia Johnson e Trevor Howard, em tocantes desempenhos: Cyril Raymond (Fred Jesson, o marido), Joyce Carey (Myrtle  Bagot, a garçonete), Stanley Holloway (Albert Godby, o condutor do trem) e Everley Gregg, a tagarela).

Embora seja hoje considerado um clássico do cinema inglês, o filme não teve boa acolhida na sua primeira exibição. “Estávamos fazendo Grandes Esperanças em locação nos pântanos de Romney, quando Desencanto ficou pronto e eu trouxe a primeira cópia. Nós a levamos para o cinema local e a projetamos  como uma pré-estréia de surpresa. O filme começou e, durante a primeira cena de amor, uma mulher na fila da frente desatou a rir, um horrível gargalhada como cacarejar de galinha. Então todos começaram a rir, e o cinema inteiro a acompanhou. No dia seguinte, fiquei pensando como poderia entrar no laboratório de Denham e queimar o negativo. Estava tão envergonhado do meu trabalho…”.

Embora sua associação com Coward tivesse sido bastante proveitosa, Lean resolveu adaptar – extirpando personagens menores para condensar a intriga – Grandes Esperanças / Great Expectations de Charles Dickens. Ele e os demais roteiristas (Neame e Havelock-Allan) souberam preservar a estrutura da história, o verdadeiro espírito do autor e seu senso de observação, notadamente na primeira parte do filme, na qual se expressa muito bem o mundo da infância. O filme é até hoje considerado como a melhor transposição da obra do famoso escritor. E a cena do encontro assustador de Pip com o forçado Magwitch nos pântanos de Kent, um instante antológico do Cinema.

Outras cenas marcantes: a chegada de Joe Gargery a Londres, a morte de Miss Havisham com as vestes incendiadas, a tentativa de fuga de Magwitch e a caminhada de Pip até o leito de seu benfeitor, todas expostas com inteligência e rigor formal.

Os cenários contribuíram muito para o sucesso da fita, particularmente os interiores da mansão gótica e decadente de Miss Havisham (que parece assumir proporções maiores do que as freais porque o fotógrafo Guy Green usou uma lente de 24mm em vez da usual de 35 ou 40mm), as ruas de Londres de 1830, a estalagem Barnard, o escritório do advogado Mr. Jaggers (cujas paredes são decoradas pelas máscaras mortuárias dos clientes que ele perdeu para as galés), a prisão de Newgate, o Templo e o cemitério campestre, todos erguidos dentro dos estúdios Denham com a mesma mestria. E o resultado foi a obtenção do Oscar de 1947 para Melhor Fotografia e Direção de Arte em preto e branco (John Bryan), tendo havido ainda indicações para Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro.

O elenco, personificando admiravelmente os deliciosos tipos, perfeitamente delineados pelos roteiristas, além do menino Anthony Wager (Pip criança), incluía John Mills (Pip adulto), Valerie Hobson (Estella adulta), Jean Simmons (Estella criança), Bernard Miles (Joe Gargery), Martita Hunt (Miss Havisham), Francis L. Sullivan (Jaggers), Finlay Cutrrie (Magwitch) e Alec Guiness, iniciando sua longa colaboração com o diretor (ao todo, seis filmes) no papel do companheiro de quarto de Pip, Herbert Pocket. Como resumiu James Agee: “Grandes Esperanças fez por Dickens o que Henrique V fez por Shakespeare”.

Com o êxito de Grandes Esperanças, Lean e seus associados decidiram filmar – com a mesma integridade no tratamento e cuidadosa construção dramática – outro livro de Dickens e, para o papel central de Oliver Twist / Oliver Twist / 1948,  selecionaram – entre 1.500 candidatos – o jovem John Howard Davies.

Coube entretanto a Alec Guiness o penoso encargo de recriar a figura de Fagin,  inspirada no roteiro pelas ilustrações originais do romance feitas por George Cruikshank. O ator tinha que chegar a Pinewood às seis da manhã para ficar durante duas horas e meia sob os cuidados do maquilador Stuart Freeborn. “Guiness era muito moço, quando demonstrou desejo de interpretar Fagin, o corruptor dos jovens e chefe adulto da quadrilha de pequenos batedores de carteiras. Pensei que estivesse fora de si, mas ele me persuadiu a testá-lo, dizendo que não queria saber de maquilagem ou das roupas que iria usar: só queria caminhar pelos cenários e me surpreender. Bem, no dia do teste, foi isso o que ele fez. Maravilhoso!”.

Mas tal performance provocou fortes protestos de alguns grupos judaicos nos Estados Unidos, os quais a apontavam como acentuadamente anti-semita, tendo sido, por isso, cortados dez minutos de close-ups e de perfís de Fagin, quando o filme veio a ser normalmente exibido, dois anos após o lançamento, na Inglaterra. Por curiosidade, em 1922, a censura britânica havia objetado a versão americana muda com Lon Chaney, porque “poderia encorajar a delinquência juvenil no país”.

Para alguns, Oliver Twist (fotografado por Guy Green) é mais poético e visualmente excitante do que Grandes Esperanças. A sequência de abertura – inventada especialmente para o filme – mostrando a jornada da mãe de Oliver (Josephine Stuart) grávida pelo desolado pântano sob a tempestade, até falecer, após o nascimento do filho é, por exemplo, um momento de puro Cinema, sobressaindo também as cenas brutais e realistas no asilo, as de Fagin ensinando Oliver a roubar e a da morte de Nancy, ouvindo-se os gritos fora do quadro, enquanto o cachorro do assassino arranha em pânico a porta.

Ao lado dos lances melodramáticos – e é de um grande melodrama que se trata – , o aspecto social foi abordado com veemência, evocando-se as condições desumanas dos pobres, a miséria e a sordidez de Londres do século dezenove e, novamente, um elenco impecável no qual se destacavam, além de Guiness, Robert Newton (Bill Sykes, depois de cogitado Robert Donat), Anthony Newley (Artful Dodges), Kay Walsh (Nancy) e Francis L. Sullivan (Mr. Bumble), deu autenticidade à galeria de retratos dicksenianos.

O filme seguinte de Lean, História de uma Mulher / The Passionate Friends / 1948, baseado num romance de H. G. Wells, com roteiro de Eric Ambler, focaliza, por meio de retrospectos embutidos uns nos outros, as dificuldades afetivas de um triângulo  amoroso. “Gosto de fazer filmes sobre mulheres. Gosto de contar histórias de amor. Acho-as fascinantes … A história é sobre tentação e não segue inteiramente a obra original porém o espírito desta foi mantido”.

A mulher, Mary Justin (Ann Todd) de um banqueiro milionário, Howard Justin (Claude Rains) encontra um dia o antigo namorado, Stephen Stratton (Trevor Howard, substituindo Marius Goring) e um romance clandestino se inicia. Ao ter de optar por um dos dois, ela permanece com o marido, por conveniência. Tempos depois, reencontra acidentalmente o namorado mas já casado e com filhos. O marido descobre, pede o divórcio e quase leva a esposa ao suicídio. Lean explora mais uma vez o tema da resignação e da submissão às regras sociais e morais que já estavam no centro de Desencanto.

Rodado em parte na Suiça, o filme tem uma bela fotografia (Guy Green, assessorado pelo operador de câmera Oswald Morris), inspirada na iluminação de Lee Garmes, que filmou muitos trabalhos de Marlene Dietrich para Josef von Sternberg,  e comprova mais uma vez a segurança narrativa do diretor.

O crítico e professor de cinema Hugo Barcelos, de quem fui aluno e com quem trabalhei no extinto Diário de Notícias, comentou na época: “Sua linguagem, originalíssima, criando em torno dos personagens uma atmosfera de realismo a um só tempo forte e delicado, porque expressivo, e também sutil, dá ao filme um poder artístico invulgar, comunicando-se com a platéia de maneira imediata. Suas criaturas vivem perigosamente, porque assim as concebe a câmera que, por uma parte, é impregnada de bom Cinema, já pela riqueza em detalhes dinâmicos, já pela focalização expressionista, já ainda pelo sentido econômico das frases que se desenrolam sem convencionalismos, sem lugares-comuns, sem vacilações”.

Durante a filmagem de História de uma Mulher, Lean (então casado com Kay Walsh, sua segunda esposa – a primeira foi Isabel Lean, prima de David, que lhe deu um filho, Peter) apaixonou-se por Ann Todd. Eles se divorciaram de seus respectivos companheiros e se casaram no ano seguinte. Lean se casaria pela quarta vez com Leila Matkar, pela quinta vez com Sandra Hotz e pela sexta vez com Sandra Cooke. Apesar de casado, Lean morou muitos anos com sua continuísta, Barbara Cole.

Ann Todd manteve-se com Lean, protagonizando O Grito da Carne ou As Cartas de Madeleine / Madeleine / 1949, que relata o caso verídico, ocorrido nos meados do século XIX, com a filha de uma família rica e respeitada de Glasgow. Madeleine Smith foi levada ao tribunal sob a acusação de ter envenenado o amante, um francês chamado Emile L’Angelier (Ivan Desny). Embora fossem contra ela as circunstâncias, os jurados absolveram-na por falta de provas. Após a sentença, a ré se nega, com um olhar ambíguo, a responder ao eventual narrador: culpada ou inocente? O público fica sem saber se Madeleine era uma assassina ou não e este fato pode ter contribuído para o fracasso do filme no seu lançamento.

O ponto alto do espetáculo é o emprego da montagem, salientando-se  a cena em que Madeleine e Emile, assistindo às danças escocesas, sentem o perturbador ritmo da festa. Quando Madeleine cai, cresce sobre ela o corpo do amante e há o corte para um par de dançarinos excitados, fugindo para um local conveniente à satisfação de seus desejos. O virtuosismo prossegue no julgamento, apresentado de modo original, com inspiradas angulações de câmera e habilidoso uso do flashback.

Décio Vieira Ottoni, crítico de outro jornal que não existe mais, o Diário Carioca, sintetizou na ocasião: “Sem ser um grande filme, porque Lean não teve em mãos um argumento à altura de seu excepcional talento, O Grito da Carne é, contudo, a história maravilhosamente narrada de um mistério famoso”.

Lean só voltaria aos estúdios no final de 1951 quando, a convite de Alexander Korda, se reuniu com Ann Todd, Ralph Richardson e Nigel Patrick em Shepperton, para iniciar Sem Barreira no Céu / The Sound Barrier /1952.

Fascinado pelo tema, Lean passou três meses conversando com o pessoal das fábricas de aviões e pediu ao dramaturgo Terence Rattigan um roteiro original. Este entregou-lhe a história de um magnata visionário, John “J. R.” Ridgefield  (Ralph Richardson) em conflito com a filha, Susan (Ann Todd) e o marido desta, Tony (Nigel Patrick), um dos pilotos de provas, na obsessão de construir um engenho capaz de quebrar a barreira do som. Tony morre num teste. Susan acusa o pai de sacrificar vidas humanas inutilmente, inclusive a do outro filho, Christopher (Denholm Elliott) – e se afasta dele, compreendendo depois sua tarefa de pioneiro.

O roteiro (e argumento) de Rattigan foi indicado para o Oscar e o Departamento de Som da London Films ganhou a estatueta da Academia. A produção recebeu ainda da British Film Academy os prêmios de Melhor Filme e Ator (Ralph Richardson) e Richardson teve a aprovação dos críticos de cinema de Nova York como melhor ator do ano.

Faltou apenas o reconhecimento de que a verdadeira força do filme estava nas cenas aéreas (memorável a de abertura)  fotografadas por Jack Hildyard  com  a ajuda da equipe da 2ª unidade (Anthony Squire). As imagens dos jatos supersônicos cortando os céus deixam rastros de beleza na tela e confirmam que os filmes de Lean, tal como os de Antonioni, “florescem no espaço”.

Lean voltou à Inglaterra Vitoriana, precisamente a Salford, Lancashire de 1890, vertendo para a tela a peça de Harold Brighouse em Papai é do Contra / Hobson’s Choice / 1953, seu último filme em preto e branco, com a costumeira capacidade para captar a época.

Ruas de pedras arredondadas, lojas austeras, salas de estar afetadas, tavernas cheias de fumaça, troles, anquinhas, peitilhos de cartolina, leitos de quatro colunas e o ar poluído da pequena cidade industrial compõem a atmosfera ao mesmo tempo lúgubre e truculenta, que as lentes de Jack Hildyard captam com inspiração. Por meio de insolentes movimentos, a câmera descobre detalhes pitorescos que Malcom Arnold sublinha com irônico comentário musical, reforçando a excelente pintura de costumes.

Charles Laughton, como Henry Horatio Hobson, dono de uma loja de caçados, tirânico e beberrão, forja uma caricatura ruidosa – é notável a cena de seu delírio alcoólico – contrabalançando o jogo cênico quieto e delicado de Brenda de Banzie como Maggie, a filha mais velha que tem a coragem de desafiá-lo, casando-se com seu tímido e iletrado empregado, Willie Mossop (John Mills, substituindo Robert Donat e inspiradíssimo na pantomima gentil das preparações de Mossop para a sua noite de núpcias) e lhe fazendo concorrência comercial.  Com esses três intérpretes experimentados, Lean produziu enfim uma comédia cheia de espírito, sátira e sentimento, de humor tipicamente britânico, votada pela British Film Academy como o Melhor Filme do Ano.

Quando o Coração Floresce / Summer Madness / 1955, intitulado nos Estados Unidos e mais conhecido como Summertime, rodado em Veneza, inaugurou a carreira internacional de Lean.

Ultrapassando o filme turístico, Lean exprimiu, através das vistas fotogênicas da cidade,  a evolução de uma personagem feminina que descobre o amor. Baseado na peça The Time of the Cuckoo de Arthur Laurents, com roteiro de Lean e H. E. Bates, o filme continua de certa forma o ensaio de Desencanto, mostrando com extrema discrição a melancolia e a amargura que acompanham um amor impossível. É uma análise psicológica das emoções de uma solteirona americana, Jane Hudson (Katharine Hepburn), solitária e romântica, que, na sua primeira viagem à Europa, vem a conhecer um comerciante de antiguidades, Renato De Rossi (Rossano Brazzi). Os dois se apaixonam, vivem dias idílicos, até que ela fica sabendo que ele é casado e se separam.

A fotografia de Jack Hildyard dos canais, becos, pontes e da não menos tradicional Praça de São Marcos com a igreja e os pombos, enche os olhos. Lean, porém soube evitar que tais esplendores desviassem a atenção da história.

O diretor e um dos produtores, Ilya Lopert, passaram dois meses no período de preparação do filme escolhendo locações e tiveram de contornar alguns problemas como: acomodar as câmeras em ruelas estreitas ou sob as pontes e dar comida aos pombos no centro e não no canto sudoeste de São Marcos, quebrando uma praxe antiga.

Katharine Hepburn, em comovente desempenho, refletindo toda a luta interior entre o desejo e o medo de uma mulher de meia-idade frustrada, domina completamente o filme num papel sob medida para seu temperamento. Ela foi candidata ao Oscar de Melhor Atriz, tendo Lean também sido indicado como Melhor Diretor.

A Ponte do Rio Kwai / The Bridge on the River Kwai / 1957 marcou a entrada triunfal de Lean no superespetáculo em CinemaScope e tornou-o um diretor privilegiado, que podia impor condições de trabalho.

O autor do romance que serviu de base para o filme, Pierre Boulle, havia sido procurado em primeiro lugar pelo cineasta francês Henri-Georges Clouzot (que, apreensivo com os custos, desistiu de adaptar a obra para o Cinema) e depois por Alexander Korda; Sam Spiegel, porém, foi quem acertou definitivamente com Boulle, investindo três milhões e meio de dólares na produção.

Com locações no Ceilão, a produção levou três anos em preparo. Só a enorme ponte, onde se dá o clímax da narrativa, levou oito meses para ser construída, tendo sido usado também um trem de verdade.

O roteiro, assinado por Boulle – mas, na realidade, escrito por Carl Foreman e Michael Wilson, ambos então na Lista Negra de Hollywood – traz uma mensagem pacifista, atacando não só a guerra como também o espírito militar exacerbado, mostrando a relatividade de valores como a honra e a coragem.

A ação – em ritmo de aventura e inspirada num fato verídico da Segunda Guerra Mundial – transcorre na Malásia, onde japoneses forçam prisioneiros ingleses a trabalhar nas obras da estrada de ferro de Bangkok a Rangoon. O coronel britânico, Nicholson (Alec Guiness depois de cogitado Noel Coward e, embora pareça incrível, Charles Laughton), após ganhar uma batalha ética do comandante nipônico, Sato (Sessue Hayakawa), concorda em ajudá-lo a erguer uma ponte sobre o rio Kwai da melhor maneira possível. Seu argumento é o seguinte: as guerras passam mas a obra fica. Ela permanecerá nos séculos  vindouros como um testemunho da superioridade britânica sobre os bárbaros “momentaneamente” vitoriosos.

A narrativa, a principio, é linear porém, com a fuga do marujo americano Shears (William Holden, depois de cogitado Cary Grant), logo se bifurca em ações paralelas. De um lado, os prisioneiros esforçando-se na construção da ponte que serviria às manobras do inimigo, e do outro, um grupo de comandos (sob a orientação do Major Warden (Jack Hawkins) empenhados em sua destruição. No final, quando a montagem alternada se funde num episódio de intensa emoção e suspense, cheio de ironia, o médico do campo (James Donald), observador imparcial dos acontecimentos, com um amargo e profundo sentimento de absurdo, denuncia toda a loucura reinante.

O talento artístico e o sólido profissionalismo do diretor foram finalmente reconhecidos com o Oscar, cabendo também um estatueta da Academia para Sam Spiegel (Melhor Filme), Pierre Boulle, Michael Wilson, Carl Foreman (Melhor Roteiro Adaptado), Alec Guiness (Melhor Ator), Jack Hildyard (Melhor Fotografia), Peter Taylor (Melhor Montagem) e Malcolm Arnold (Melhor Música).

Animados  com o êxito da sua última realização, Lean e Spiegel continuaram juntos e discutiram a possibilidade de um filme sobre a vida de Gandhi mas, por vários motivos, voltaram sua atenção para a pessoa do legendário T.E. Lawrence, o jovem inglês do serviço secreto britânico que, durante a Primeira Guerra Mundial, conseguiu unir as tribos árabes contra os turcos, aliados dos alemães.

Tal como  A Ponte do Rio Kwai, o filme Lawrence da Arábia / Lawrence of Arabia / 1962, é uma superprodução espetacular e, ao mesmo tempo, o retrato de um homem: só que, desta vez, uma figura histórica complexa e ambígua. Agente secreto, líder militar, agitador, nevrosado, exibicionista, sádico, masoquista, homossexual, Lawrence pode ter sido tudo isso – e Peter O’Toole (então com 28 anos) tornou-se um astro, reconstituindo admiravelmente todas as nuances, as hesitações e o entusiasmo dessa tumultuosa personalidade.

Embora inspirando-se no livro The Seven Pillars of Wisdom de Lawrence, Robert Bolt usou a sua própria concepção sobre o biografado e, procedendo a uma economia dramática, criou um roteiro de grande senso visual que, em tom de epopéia, narra na realidade um drama intimista. “Emoções humanas, e não circos, é que fazem um grande filme. Em todos os filmes épicos, o conflito humano deve ficar em primeiro plano”.

Em 1958, Anthony Asquith esteve a ponto de realizar um Lawrence da Arábia com Dirk Borgarde. Antes de O’ Toole, foi anunciado Marlon Brando e testado Albert Finney para o papel de Lawrence. Pensaram também em Alec Guiness, por este ter vivido o personagem na peça Ross de Terence Rattigan. Os nomes de Cary Grant, Kirk Douglas e Horst Bucholz chegaram a ser cogitados para outros papéis.

Spiegel gastou 12 milhões de dólares, rodando o filme na Jordânia (cenas do deserto), Espanha, passando por Cairo, Damasco, Jerusalém e Marrocos (cenas da batalha na qual o regimento turco é dizimado). Andre de Toth trabalhou algum tempo como diretor da 2ª Unidade, sendo depois substituído por seu assistente Nicolas Roeg. Entre os momentos mais marcantes vale a pena serem citados aquele plano de detalhe de um fósforo aceso que se transforma subitamente nas escaldantes imagens do deserto (“Foi o corte  do qual eu mais orgulhei de tudo o que fiz”) e o ataque à ferrovia de Hejaz com Lawrence correndo por cima dos vagões.

Contando ainda com Omar Sharif, Alec Guiness, Anthony Quinn, Anthony Quayle, José Ferrer, Claude Rains, Jack Hawkins (dublado por Charles Gray, porque o ator perdera a voz em virtude de um câncer na garganta), Arthur Kennedy, Donald Wolfit no elenco, o filme conquistou sete Oscar – Melhor Filme, Direção, Fotografia em cores (Freddie Young), Montagem (Anne Coates), Direção de Arte e Decoração em cores (John Box, John Stoll, Dario Simoni), Música (Maurice Jarre),  e Som (John Cox e o Departamento de Som do Shepperton – assinalando o início da frutuosa colaboração de Lean com Robert Bolt, John Box, Maurice Jarre e, principalmente, com o excelente fotógrafo Freddie A. Young (vencedor do Oscar também por Doutor Jivago e A Filha de Ryan).

Questionado a respeito de seu enquadramento como “diretor de superespetáculos”, Lean respondeu : “Se você quiser fazer Lawrence da Arábia direito, não poderá fazê-lo barato. Custa uma fortuna levar uma equipe enorme – gruas, refletores e milhares de figurantes – para o deserto. Ao contrário, seria tolice gastar muito dinheiro em algo como Desencanto. Ele custou pouco, e eu o fiz em dez semanas. Trabalhei três anos em Lawrence. Se amanhã  encontrar um assunto que possa filmar sem dispender muito dinheiro e em dez dias, ficarei absolutamente encantado”.

Depois da cerimônia de entrega do Oscar, David recebeu um telefonema de Fred Zinnemann, que queria saber se ele poderia dirigir algumas cenas de A Maior História de Todos os Tempos / The Greatest Story EverTold, o filme de George Stevens sobre o Cristo, que estava sendo filmado há mais de um ano nos desertos de Nevada e Utah. Stevens ultrapassara o orçamento e os produtores o obrigaram a aceitar uma segunda unidade em duas sequências. Após certa hesitação, Lean concordou em dirigir as cenas envolvendo o Rei Herodes, na qual participariam Claude Rains e José Ferrer, atores que ele já conhecia.

O próximo assunto a interessar Lean – “por sua boa história de amor”- foi Dr. Zhivago, o volumoso romance de Boris Pasternak, laureado com o Prêmio Nobel.

O produtor Carlo Ponti, que havia adquirido os direitos de filmagem em 1962, induziu a MGM a investir no projeto 11 milhões de dólares e, na fase de pré-filmagem, o diretor visitou a Iugoslávia, Canadá, Itália e a Escandinávia à procura de exteriores semelhantes à paisagem russa, escolhendo finalmente a Espanha  e a Finlândia (fazendo as vezes de Sibéria).

Filmado na Iugoslávia, Doutor Jivago / Dr. Zhivago / 1965 traça a trajetória de Yuri Jivago (Omar Sharif depois de cogitados Paul Newman, Max Von Sydow e Burt Lancaster), médico e poeta, na Rússia do começo do século vinte. Ele contrai matrimônio com Tânia (Geraldine Chaplin), companheira da infância e mais tarde conhece Lara (Julie Christie, com a aprovação de John Ford que, consultado por Lean a respeito da atuação dela em O Rebelde Sonhador / Young Cassidy, respondeu: “Ela é ótima … Ninguém no passado demonstrou tanto talento com tão pouca idade”), protegida do negociante Komarowski (Rod Steiger, substituindo James Mason) e amiga do jovem revolucionário Parel Antipov (Tom Courtenay), com quem acaba se casando. A Primeira Guerra Mundial separa os dois casais e põe Jivago de novo diante de Lara, que se tornara enfermeira voluntária, a fim de localizar o marido, dado como desaparecido na linha de frente. Fugindo de Moscou para livrar a família  da epidemia, da revolução e da fome, Jivago tenta viver em paz numa casa solitária nos Montes Urais; mas é aprisionado e forçado a servir os guerrilheiros. Quando consegue voltar, a mulher e os filhos haviam partido para a capital e ele encontra mais uma vez Lara, com quem passa alguns dias de amor, antes dela ser levada “como folha morta” por Komarowski.

Esta intriga é acionada com a austeridade e a fluência peculiares do cineasta, irrompendo a cada instante imagens suntuosas e de grande força cinematográfica como a da carga dos cossacos contra a passeata socialista (em estilo eisensteiniano), o castelo de Varykino no meio de uma planície imensa toda florida ou o trem blindado cruzando as estepes, que garantiram vários Oscar: Melhor Roteiro Adaptado (Robert Bolt), Melhor Fotografia em Cores (Freddie Young), Melhor Música (Maurice Jarre), Melhor Direção e Arte e Decoração em cores (John Box, Terry Marsh, Dario Simoni), Melhor Figurino em cores (Phyllis Dalton, que já havia se destacado em Lawrence da Arábia).

Somente cinco anos depois da realização de Doutor Jivago (desde Quando o Coração Floresce o intervalo mínimo entre seus filmes é de pelo menos dois anos), Lean voltou à atividade, desta vez usando um argumento original de Robert Bolt sobre o amadurecimento de uma jovem em remota aldeia irlandesa durante a Primeira Guerra Mundial. Bolt descreveu o relato como a história da “universal tendência da juventude de querer obter algo à custa de nada … e a compreensão de que tudo tem seu preço”.

Rose Ryan (Sarah Miles) casa-se com o maduro Professor Charles Shaughnessy (Robert Mitchum, depois que Paul Scofield recusou o papel) mas a união se frustra, pois ele não a desperta sexualmente, e é sustentada apenas pelos conselhos do Padre Collins (Trevor Howard depois de cogitado Alec Guiness). Um incidente na taverna de Tom Ryan (Leo McKern), pai de Rose, aproxima-a do Major Doryan (Christopher Jones, depois de cogitados Marlon Brando,  Richard Burton, Richard Harris, Anthony Hopkins e Peter O’Toole), o novo comandante das forças inglesas na região, mutilado e neurótico de guerra. Eles se tornam amantes e as suas relações são divulgadas involuntariamente por Michael (John Mills), um idiota mudo. Quando, avisado à tempo, o major aprisiona um líder revolucionário local, O’Leary (Barry Foster) que, com o apoio do povo, descarregava armas na praia, as suspeitas recaem sobre Rose e não sobre seu pai, o verdadeiro traidor. A população invade a escola, corta os cabelos de Rose e Charles, embora já ciente de sua infidelidade, ampara-a. O major, que soubera da decisão de Rose de abandoná-lo, suicida-se. Rose e Charles deixam a aldeia.

Drama intimista à maneira de Thomas Hardy, emoldurado por amplos e belíssimos espaços, que as câmeras de Freddie Young fotografaram criativamente, A Filha de Eyan / Ryan’s Daughter / 1970 inclui-se na grande tradição romântica do Cinema. A meticulosidade (três anos de preparação, 14 meses de filmagem, um ano de montagem) e a gentileza de espírito do cineasta geraram cenas como a do fracasso na noite nupcial em alternância com a festa do casamento; a cena do desembarque da carga sob a tempestade; a cena do quase linchamento de Rose; a cena do primeiro encontro de Rose com o major na taverna e a lírica entrega amorosa na floresta, que empolgam pelo esmero estético. A meu ver uma obra-prima – apesar de ter sido mal recebido por muitos críticos -, o filme ocasionou dois Oscar: Melhor Ator Coadjuvante (John Mills) e Melhor Fotografia (Freddie Young).

Em outubro de 1973, o Directors Guild of America concedeu o D. W. Giriffith Award para David Lean. O prêmio lhe foi entregue por George Stevens que Lean havia ajudado filmando algumas cenas para A Maior História de Todos os Tempos.

Lean já tinha preparado, com Robert Bolt, os roteiros para dois longas-metragens que, sucessivamente, narrariam, de maneira mais completa, a saga do “Bounty” (o primeiro terminaria com a fantástica viagem do Capitão Bligh até a Austrália; o segundo contaria a perseguição de Fletcher Christian e seus companheiros pelo Capitão Edwards) e escolhido locações no Taiti, quando Dino de Laurentiis comunicou-lhe que a produção não poderia ir adiante por falta de recursos.

O diretor ficou praticamente inativo 14 anos desde A Filha de Ryan e finalmente escolheu como assunto do novo filme um clássico da literatura inglesa, A Passage to India de E. M. Foster. Lean havia visto a encenação teatral feita pela indiana Santha Rama Rau em 1958 e pretendeu levar a historia para a tela logo após Lawrence; mas isto não foi possível. A oportunidade surgiu em 1983 com a aquisição dos direitos pelos produtores John Brabourne e Richard Goodwin, responsáveis por recentes adaptações de romances de Agatha Christie. “Será um filme curioso e provocante, porque o livro é assim. Existem muitas coisas confusas, tal como corre na vida real. Você  conhece pessoas, compreende certos aspectos delas mas  outros permanecem ocultos e você tem quer adivinhar quais são … Quero dirigir filmes nos quais os espectadores saiam do cinema discutindo os personagens que acabaram de ver “.

No relato de Passagem para a Índia / A Passage to India / 1984, passado nos anos 20, Mrs. Moore (Peggy Ashcroft) chega a Bombaim na companhia da jovem Adela Quested (Judy Davis), para visitar o filho magistrado, Ronny Heaslop (Nigel Havers), com quem Adela está comprometida. As duas têm idéias avançadas e se incomodam com o tratamento dispensado pelos ingleses aos indianos. Fascinadas pelo país, depois de travarem conhecimento com o sensível Professor Fielding (James Fox), um brâmane fatalista, Dr. Goldbole (Alec Guniess) e um jovem médico indiano, Dr. Aziz (Victor Banerjee), elas partem numa excursão às famosas grutas de Marabar, onde ocorre um incidente enigmático, que levará Aziz a julgamento.

Com sua límpida maneira de narrar, Lean nos mostra um drama psicológico entrelaçado com os fatos da difícil convivência entre colonizadores e colonizados, vistos através do comportamento dos personagens – alguns (Mrs. Moore, Goldbole) simbólicos e cercados de misticismo -, deixando no final uma esperança de concórdia.

O diretor, autor também do roteiro, fez questão ainda de assinar a montagem (“No fundo continuo sendo montador. Não consigo manter minhas mãos afastadas da tesoura”) e, auxiliado por Ernest Day, operador de câmera em Lawrence da Arábia, Doutor Jivago e A Filha de Eyan, agora elevado a fotógrafo, forjou cenas magnificas, destacando-se a do passeio de bicicleta de Adela pelas ruínas eróticas habitadas por macacos, imaginada por Lean como modelo de Cinema puro.

O filme obteve 11 indicações para o Oscar (Lean concorreu ele próprio em três categorias) e conquistou os prêmios para Melhor Atriz Coadjuvante (Peggy Ashcroft) e Melhor Música (Maurice Jarre). Em 1990, Lean receberia o Life Achievement Award do American Film Institute.

David Lean faleceu em 16 de abril de 1991 de câncer na garganta, quando começava os preparativos para a filmagem do romance Nostromo de Joseph Conrad que, provavelmente, seria mais uma grande obra na carreira de um realizador, para quem o Cinema era, essencialmente, fonte de prazer (o prazer da narrativa) e expressão de beleza, e que estava sempre atento às pulsações da vida.

15 Responses to “O CINEMA DE DAVID LEAN”

  1. Soberbo diretor. Gosto de todos os seus filmes.

    O Falcão Maltês

  2. Lean era um diretor típico do cinema clássico, narrativo. Sua preocupação era contar uma história com clareza, por meio de belas imagens, que pudessem emocionar o público.

  3. Muitos críticos subestimam o talento de David Lean, em parte porque desconhecem seus primeiros trabalhos, enquanto outros, sobretudo os franceses (Truffautera um deles) tinham desdém pelo seu cinema tipicamente inglês e acadêmico. Hoje em dia é fácil fazer um filme de época em estúdio diante de telas verdes e depois recriar tudo em CGI e chamar de “épico”… Mas filmar em locações como Lean fazia, é para poucos.
    Cada texto do autor é uma aula de cinema. Obrigado por relembrar a importância de Lean para a sétima arte.

  4. Marcio, concordo inteiramente com você.

  5. Sou um grande admirador do cinema de David Lean, desde adolescente.
    “Lawrence da Arábia” é o filme da minha vida. Mas também amo “A Ponte do Rio Kwai” e “Doutor Jivago”, que me marcaram demais.
    Todos filmes suntuosos, épicos minuciosamente produzidos, mas cujo fator humano, dramático da história, é que prevalece.
    Parabéns pela belíssima repostagem. Trouxe-me boas lembranças.

  6. Obrigado Pedro. Sua análise dos filmes de Lean é perfeita.

  7. This is interesting stuff and new to me. Does anyone know where I can find more content like this? Much appreciated.

  8. Thanks for your visit.

  9. A.C. Gosto muito do David Lean. Como sempre, muito bem elaborado o post.

    Preciso de sua ajuda: Não estou encontrando para comprar o livro “O Outro Lado da Noite : Filme Noir”. Esgotado no fornecedor.

    Tem alguma dica de onde encontrar, ficaria muito agradecido.
    P.S. Saudades da Cinemin…

    J.Henrique

  10. Acho que na Editora Rocco você ainda encontra. Ligue para lá: (021) 35252000 – Av. Presidente Wilson 231 8ºandar CEP20030-21 Rio de Janeiro-RJ. Grato pela visita.

  11. A.C.

    Encontrei na Editora Rocco.

    Muito obrigado!!!

    João Henrique

  12. A.C.

    Alarme falso.
    Infelizmente recebi um email do comercial da editora, cancelando minha compra. motivo: “está esgotado na editora sem previsão de reimpressão…”.

    De qualquer forma agradeço a dica. Vou procurar em algum sebo.

    Abs

    João Henrique

  13. Prezado João Henrique. Que pena que meu livro esgotou mas, sensibilizado pelo seu interesse, procurei-o no site Estante Virtual e …achei. Dê uma olhada.

  14. A.C.

    Deu certo no Estante Virtual. Efetuei a compra na Livraria Opção Cultural (Goiãnia).Assim que receber o livro, aviso.

    Mais uma vez muito obrigado.

    Abs

    João Henrique

  15. A.C.

    Enfim encerrou-se a epopéia. Recebi o livro hoje e está em excelênte estado.

    Agora vou desfrutar do conteúdo.

    Obriagado mais uma vez

    João Henrique

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