MICHAEL CURTIZ – I

fevereiro 16, 2012

Michael Curtiz costuma ser caracterizado como “diretor típico de estúdio”,  profissional competente e confiável, que estava sempre pronto a assumir qualquer tarefa que lhe dessem. Todavia, ele foi responsável por alguns dos melhores filmes da Época de Ouro de Hollywood.

Associado aos mais talentosos intérpretes e técnicos da indústria cinematográfica, Curtiz trabalhou em variados gêneros – drama criminal e romântico, western, aventura histórica e de guerra, musical, cinebiografia, comédia, horror, filme noir, etc., aos quais imprimiu uma energia dramática contagiante.

Na sua longa filmografia não se vislumbra uma visão pessoal, porque ele visava apenas o entretenimento, preocupando-se sempre em fazer com que seus filmes valessem o preço do ingresso. Mas é fácil reconhecer imediatamente o estilo Curtiz: extrema mobilidade da  câmera, angulações variadas, efeitos incessantes de sombras impregnadas de um germanismo expressionista, profusão de travelings, direção bastante expressiva dos atores, rapidez na narrativa e o uso constante da elipse.

Ele dirigiu ao todo 168 filmes, sendo 66 na Europa e mais 102 nos Estados Unidos, onde logo se tornou o principal diretor contratado da Warner Bros., encarregado de seus astros e produções de maior magnitude.

Emmanuel Kaminer, logo rebatizado como Mihály Kertész, nasceu em Budapest, Hungria no dia 24 de dezembro de 1886, filho de Ignácz Kaminer  e Aranka Natt.

Seus pais eram de origem humilde. A família de Ignácz,  de sobrenome Kohn,  era uma das tantas estirpes judias que há vários séculos haviam se estabelecido na Europa Central. Ignácz se mudou de Delatyn, pequena  povoação no centro da província de Galitzia, para Budapest em busca de trabalho e mudou o sobrenome para Kaminer.

Na sua infância, Mihály vendia doces nas portas dos teatros mais pobres para poder assistir as representações e, pouco a pouco, foi adquirindo interesse pelas artes cênicas. Em 1904, ele terminou seus estudos primários e sua intenção era ser ator profissional; porém na Austria-Hungria era necessário ser graduado pela Academia Real de Teatro e Arte e o jovem Mihály não tinha condições para se matricular. Em 1908, ele conseguiu finalmente entrar para a Academia Real e, após sua formatura em 1911, assinou contrato com o Magiar Színhaz (“Teatro Nacional”) de Budapest. Mihály teve ali a oportunidade de aprender o suficiente para se tornar diretor, primeiro de teatro e depois de cinema.

Eis que um dia, a companhia de cinema Projectograph decidiu realizar “o primeiro filme dramático húngaro”, Ma és Holnap / 1912, drama social moralista que abordava os perigos do álcool e do jogo. No momento de começar a filmagem, o francês Raymond Pellerin, contratado para manejar a câmera,  declarou que não podia acumular as funções de fotógrafo e diretor. A produtora, ciente do prestígio que Mihály já havia obtido como diretor de teatro, viu nele a solução para o problema. E assim começou a carreira cinematográfica do futuro Michael Curtiz.

Depois de realizar três filmes na Projetograph (Krausz doktor a vérpadon / 1913, Házasodik az uram / 1913, Mozikirály / 1913) num gênero híbrido peculiar que estava em moda no país, o esquete cinematográfico (incorporação no espetáculo teatral de algumas cenas filmadas para representar os sonhos ou os pensamentos dos personagens), Mihály foi para a Dinamarca, berço de uma cinematografia  popular e prestigiosa na época, em busca do que evidentemente não encontrava em Budapest: experiência profissional e conhecimentos técnicos.

Na Nordisk, ele participou como ator no filme Atlantis / 1913 (Dir: Augusto Blom) e teve o privilégio de assistir várias filmagens, ficando impressionado com a forma ditatorial pela qual os diretores dinamarqueses extraíam a interpretação que necessitavam de seus atores – tal como ele faria mais tarde em Hollywood, quando ganhou a fama de profissional exigente e dedicado ao seu trabalho.

De volta a Budapest, Mihály dirigiu mais seis filmes (Az utolsó bohém / 1913, Rablélek / 1913, Az aranyásó / 1914, A hercegnõ pongyolája / 1914, Az éjszaka rabja / 1914, A szökött katona / 1914), até seu encontro com Jen Janovics, um produtor e diretor teatral que, na remota Kolozvár, capital da Transilvania quís oferecer uma alternativa para a produção em Budapest, construindo em 1914 o estúdio Proja.

Interessado em ser o diretor de suas produções, porém desconhecendo o meio cinematográfico, Janovics decidiu contratar Mihály, oferecendo-lhe a possibilidade de dar um passo adiante em sua carreira. Mihály fez três filmes para a Proja: A kölcsönkért csecsemõk / 1914, A tolonc / 1914 e Bánk Bán / 1914.  Este terceiro filme, uma superprodução cuja  trama era ambientada na Hungria feudal do século treze, constituiu-se no maior sucesso artístico da sua ainda breve carreira. Quase no final da filmagem de Bánk Bán, irrompeu a Primeira Guerra Mundial e Mihály decidiu retornar a Budapest onde, aos vinte e oito anos, se alistou na milícia magiar, sendo designado para prestar serviço numa unidade de artilharia.

O acontecimento mais importante na trajetória artística de Mihály ocorreu em 1915 (ano de seu casamento com bailarina Ilonka Kovács com quem teve sua única filha, Katalin Eva Ilona Kertész), quando, após ele ter feito mais um pequeno esquete, A paradicsom, István Kiss, que acabara de fundar a produtora Terrus, o contratou para filmar Akit ketten szeretnek. Logo depois, Kiss o apresentou a Jenõ Illés, o qual fez uma proposta tentadora ao jovem cineasta: tornar-se o diretor principal de sua produtora Kino-Riport, sem prejuízo de realizar filmes em outras companhias (A bánat asszonya / 1916 – Benõ Moskovits, A karthausi / 1916 – Star Film , A halálcsengõ / 1917 – Star Film) ou atender a uma convocação da Cruz Vermelha Húngara para realizar um  filme de propaganda (A magyar föld ereje / 1916).

Em 1916, Mihály realizou 5 filmes para a Kino-Report –  Makkhetes, A doktor úr, Az ezüst kecske, A farkas, A fekete szivárvány – e com eles consolidou sua posição como uma das principais figuras cinematográficas da Hungria naquele momento.

Em 6 de abril de 1917, a Projetograph criou a sua filial Phönix Film, que nasceu  comprando todas as instalações, câmeras, laboratórios e cenários da Kino-Report. O objetivo da Phönix era alcançar um nível artístico e profissional comparável ao das companhias cinematográficas mundiais. Mihály foi nomeado Diretor Geral com poder absoluto de decisão sobre os aspectos artísticos de todas as produções.

O primeiro filme na Phönix, Zoárd Mester / 1917, drama escrito pelo próprio Mihály sobre um escultor maduro apaixonado por uma órfã, foi feito de uma maneira um tanto precipitada e não agradou nem ao público nem à crítica, mas cumpriu a finalidade de tornar conhecida a marca da nova firma. Antes de se dedicar ao seu próximo trabalho na Phönix, Mihály teve que filmar Tatárjáras / 1917, cuja realização já havia prometido a outra nova produtora, Gloria-Film. Em seguida, ele fez mais 18  filmes para a Phönix: A kuruzsló / 1917 A senki fia / 1917, A szentjóbi erdõ titka / 1917, Az utolsó hajnal / 1917, A föld embere / 1917, A vörös Sámson / 1917, A béke útja / 1917, Tavasz a télben / 1918, A csúnya fiú / 1918, Egy krajcár története / 1918, Az arendás zsidó / 1918, Az ezredes / 1918, Lulu / 1918, 99 / 1918, Az ordög / 1918, A skorpió I / 1918, A skorpió II / 1918 e Júdás / 1918.

Não se sabe o que levou Mihály a sair da Phönix, mas na última semana de outubro de 1918, ele já era diretor geral da Semper-Film, levando consigo a maior parte do melhor capital artístico da Phönix, entre eles Mihály Várkonyi (depois Victor Varconi em Hollywood) um dos maiores astros da época. Na Semper, Kertesz fez Varázskeringõ, A víg õzvegy e Lu, a kokott, anunciados enfaticamente como “os melhores da temporada”.

Ao se aproximar o ano de 1919, a sociedade húngara começa a se radicalizar, e logo se faz sentir a influência soviética. Béla Kun funda o Partido Comunista Húngaro e Mihály é um dos primeiros a colaborar com o aparelho propagandístico do regime (cf. curta-metragem Jön az öcsém de ideologia marcadamente comunista).

Com a queda de Kun, Mihály parte com a Ilonka e Katalin para Viena, a fim de iniciar uma nova vida, respondendo ao chamado de Alexander “Sascha” Joseph Graf Kolowrat Krakowsky, dono da maior empresa cinematográfica austríaca, a Sascha – Filmindustrie AG., cujo estúdio estava localizado no subúrbio de Sievering.

Em Viena, acabam confluindo grande parte de artistas conhecidos de Mihály, como o roteirista László Vajda e Ica Lenkeffy, então considerada como  “a atriz húngara mais querida do público. Ica era também reconhecida na Austria, o que lhe facilitou conseguir um contrato com uma pequena produtora-distribuidora, Allianz-Film GmbH e chamar Mihály para dirigir o seu primeiro filme austríaco, Boccacio (cf. Fernando Moretzsohn) / Boccaccios Liebesnächte / 1919, cujo protagonista masculino era outro emigrado húngaro, Pál Lukács, que posteriormente também iria trabalhar na América com o nome de Paul Lukas.

Mihály resolveu germanizar seu nome, passando de Mihály Kertész para Michael Kertesz e, com ele, assinou seu primeiro trabalho para Kolowrat, O Mistério da Luva Preta / Die Dame mit dem schwarzen Handschuh / 1919 (realizado antes de Boccaccios Liebesnächte), com Ilonka como protagonista; pois Michael estava convencido de que poderia transformá-la numa estrela de primeira grandeza no panorama cinematográfico europeu com o nome artístico de Lucy Doraine. Era uma história de intriga e mistério de tom folhetinesco sobre a viúva de um duque, que foi marcada com ferro em brasa numa de suas mãos – sinal que ela oculta com uma luva – por ter sido acusada da morte do marido e sua relação tormentosa com um diplomata francês, com quem se casa para lhe roubar documentos importantes.

Em 1920, Kertesz, seu fotógrafo Gustav Ucicky (todos os 18 filmes de Kertesz na Austria foram fotografados por Ucicky, filho presumido do pintor Gustav Klimt, que depois se tornaria diretor (vg. Heróis do Mar / Morgenrot /1932, Santa Joana D’Arc /Das Mädchen Johanna / 1935, Der Postmeister / 1940) e a estrela Lucy Doraine partiram para a Bosnia, onde dedicaram os próximos seis meses à filmagem simultânea de Estrela de Damasco / Die sterne von Damaskus, Die Gottesgeissel e Die Dame mit den Sonnenblumen. Os dois primeiros eram adaptações de um romance póstumo de George Ohnet e, embora pudessem ser exibidos como um só filme de longa duração, foram apresentados separadamente e anunciados como filmes independentes. No primeiro, A Estrela de Damasco, um pintor francês salva uma bela mestiça quando ela é maltratada numa rua da capital Síria e se enamora perdidamente por ela; a mestiça o acompanha de regresso à França, mas dentro em pouco o abandona por um aventureiro. Surpreendendo-a com o rival, o pintor fere sua amante e é condenado a trabalhos forçados. Na continuação, Die Gottesgeissel,  assistimos à redenção do pintor após sair do cárcere e o castigo posterior da mulher ingrata. No terceiro filme, Die Dame mit den Sonnenblumen, para socorrer seu pai paralítico, a protagonista é obrigada  trabalhar por um salário de miséria. Ela é o centro de atenção de mais de um homem: seu noivo, um marinheiro e um conde muito rico; do primeiro ela que se desfazer para se casar com o terceiro, mas é pelo segundo que está apaixonada. No decorrer da intriga, a jovem provocará a morte acidental do noivo e assassinará o conde, depois de haver conseguido seu título e seu dinheiro; porém acabará se suicidando, quando o marinheiro a repele, por ter sido testemunha de seus atos criminosos.

A mesma equipe terminou o ano realizando no norte da Itália uma comédia romântica seguindo os modelos americanos, Senhorita Caprichosa Mrs. Tutti Frutti e logo depois Cherchez la Femme! / Cherchez la Femme! (título alternativo Herzogin Satanella), no novo estúdio de Kolowrat situado no bairro Prater em Viena, um espaço enorme destinado a ser o centro de grandes filmes com os quais ele esperava alcançar o controle absoluto do mercado nacional. Em Cherchez la Femme, é muito lembrada a reconstrução dos três mundos de sonho, nos quais a Mulher (sempre representada por Lucy Doraine) destrói o Homem, sem nenhum remorso: o Japão onde uma geisha complica a vida de um oficial da Marinha; a França pré-revolucionária, onde a perigosa marquesa Rochefoucauld seduz um sacerdote, cujo destino é morrer pelas mãos de seu despeitado marido; e a India, onde Enunah, é escolhida como “a mulher mais bela da terra” e futura esposa do sultão, e  acaba por provocar a sua queda. Além desses três papéis no sonho, Lucy ainda interpreta a Duquesa Orlonia, que se suicida no final do filme, porque seu amante (Alphons Fryland) a trocou por uma jovem americana.

Em 1921, ainda com Gustav Ucicky e Lucy Doraine na equipe, Kertesz fez Frau Dorothys Bekennetnis e Horas de Terror Wege Des Schreckens (também conhecido como  Labyrinth des Grauens) e, no intervalo entre estes dois filmes, ele teve tempo de colaborar com o diretor Károly Lajthay no roteiro de Drakula Halála, uma abordagem do mito do vampiro da Transilvânia, remotamente inspirado no romance de Bram Stoker.

No ano seguinte, Kertesz concretizou o projeto épico de Kolowrat,  Sodoma e Gomorra / Sodom Und Gomorrha. Kolowrat ficara impressionado com as grandes produções de Pastrone, Guazzoni e Griffith e quís oferecer ao seu público um espetáculo de proporções semelhantes, ainda mais quando a sua rival, Vita – Film de Sandór (Alexander) Korda, estava planejando a filmagem de Sansom und Delila / 1922.

Lászlo Vadja e Michael Kertesz escreveram juntos o roteiro, de Sodoma e Gomorra, dividindo-o em  onze atos, entre os quais incluíram duas sequências de ambiente bíblico, misturando passado e presente como Cecil B. DeMille fazia em alguns de seus melhores filmes. Kertesz contou mais uma vez com Lucy sendo a protagonista feminina e, a seu lado, colocou Mihály Várkonyi, além do novato Walter Slezak e uma inumerável quantidade de figurantes, entre os quais se encontravam o crítico Béla Balázs e o futuro  diretor Willi Forst.

O relato exigia localizações contemporâneas espetaculares com um luxuoso palácio e amplos jardins e se situava ainda em uma cidade russa durante a revolução bolchevique, uma Sodoma bíblica e uma Assíria imaginária. Para fazer tudo isso, Kertesz contou com os palcos dos estúdios da Sascha em Sievering e  Prater, assim como locações exteriores nos palácios e jardins de Lazemburg e Schöbrunn e em Laärberg, uma zona afastada do centro de Viena, ideal para representar a corte babilônica

Como observou Manuel A. Fidalgo, autor do livro Michael Curtiz – Bajo la Sombra de ‘Casablanca’ (T&B Editores, 2009), certamente o trabalho mais completo que existe sobre o cineasta (de onde colhemos a maior parte das informações para este artigo), toda a sabedoria cinematográfica acumulada por Kertesz nos dez anos em que passou atrás das câmeras se encontra refletida nas poderosas imagens de Sodom und Gomorrha (hoje disponível em dvd na Amazon. de).

Perfeccionista incansável, Kertesz só se importava com o seu trabalho, atitude que manteria até o fim de seus dias. O pouco tempo que lhe restava era para outra paixão: o gênero feminino. No início de 1920, após sua chegada a Viena, ele havia mantido uma breve aventura amorosa com uma empregada de banco, menor de idade, chamada Mathilde Foerster. No dia 20 de novembro do mesmo ano, Mathilde deu à luz um menino de saúde precária, de nome Michael, não reconhecido pelo pai. Quando ela resolveu reclamar pessoalmente seus direitos, Ilonka, ofendida, pediu o divórcio. No começo de 1923, Mathilde recorreu às vias judiciais e Kertesz então admitiu a paternidade de Michel e passou a pagar o sustento e a educação da criança. Quase na mesma ocasião, uma atriz de segundo plano, chamada Teresa Dalla-Bona, que havia participado de um pequeno papel em Sodoma e Gomorra, deu à luz uma menina chamada Sonja, cuja paternidade Kertesz logo assumiu. Em 7 de dezembro de 1929, Kertesz se casaria nos Estados Unidos com a roteirista Bess Meredyth.

Entrementes, o diretor húngaro  foi promovido ao cargo de Diretor Supervisor da Sascha com um salário semanal de quatro milhões de coroas e se tornou diretor do primeiro sindicato cinematográfico austríaco unificado, o Gewerkschaft der Filmshaffeden Öterreichs.

Em 1923, Kertesz realizou: Amor, Egoismo e Glória / Der junge Medardus, A Avalanche / Die Lawine e Namenlos. O primeiro se baseia numa peça escrita pelo dramaturgo Arthur Schnitzler, que gira em torno de um estudante vienense, Medardus Klähr (Mihály Várkonyi), seduzido por uma francesa monarquista,  Hélène de Valois (Agnes Esterhazy), que o usa num plano para matar Napoleão (Michele Xantho). No segundo, realizado quase que inteiramente nos Alpes, sobressai a brancura da neve e das geleiras, magnificadas pelas lentes de Ucicky, cenário do drama de um engenheiro, George Rotwill (Mihály Várkonyi) atormentado por suas relações com duas mulheres Kitty (Lili Marischka) e Maria (Mary Kid). No terceiro, o protagonista, Jean Muller (Mihály Várkonyi), por amor à sua mãe adotiva, assume a culpa por um crime praticado pelo seu irmão de leite.

No ano seguinte, Kertesz filmou Harun al Raschid, a mais desconhecida das produções austríacas do diretor. O filme é considerado perdido e dele sabemos  – por intermédio de Miguel Fidalgo – apenas o enredo: um jovem de passado obscuro decide suicidar-se, após perder sua fortuna nas mesas de jogo. Quando está a ponto de dar um tiro na cabeça, o misterioso ancião causador de sua ruína lhe oferece um cheque de um milhão de francos; sua única condição é que, exatamente um ano depois, ele se enforque. Neste período, o jovem encontra o amor, o perdão por um crime cometido e, no último momento, a salvação de um complicado plano de vingança. Como se vê, o título do filme tem ressonâncias orientais mas transcorre em ambiente contemporâneo e é uma fábula sobre o jogo, a vida e a morte. Na sua Histoire du Cinema  (André Martel, 1953, pg. 334), Maurice Bardèche et Robert Brassillach citam Harun al Raschid (pelo seu título em francês,  L’Amour est le maître) como uma das obras extremamente cuidadas da  Cinematografia Austríaca no anos vinte.

Com a chegada de 1924, ninguém mais duvidava de que a indústria cinematográfica austríaca estivesse em dificuldades. A crise econômica iniciada dois anos antes, destruiu os planos ambiciosos de muitas produtoras, mas Kolowrat, como o apoio  da produtora inglesa Stoll Pictures Productions Ltd,  apostou num projeto que se assemelhava ao superespetáculo de DeMille, Os Dez Mandamentos / The Ten Commandments / 1923, dele resultando o filme mudo mais famoso de Michael Kertesz: Lua de Israel / Die Sklavenkönigin. Partindo do romance “Moon of Israel”, escrito em 1918 por H. Ridder Haggard, autor do célebre “As Minas do Rei Salomão”, o relato conjugava a história de amor entre  Seti – filho do faraó Menepath – e uma escrava  israelita de nome Merapi – chamada de “Lua de Israel” por sua beleza radiante – com a narrativa bíblica da saída do Egito do povo hebreu.

O papel de Merapi coube a Maria Corda, cuja popularidade entre o público germano-austríaco estava no seu melhor momento após os  filmes alemães dirigidos por seu marido, Sandór (Alexander) Korda; para interpretar o personagem Seti, foi contratado o ator chileno Adelqui Millar; e, encarnando a formosa Userti, futura mulher do herdeiro do trono, estava a atriz francesa Arlette Marchal.

A divulgação das imagens do interior da tumba de Tutankhamon, descoberta recentemente, facilitou o trabalho dos diretores de arte Artur Berger, Emil Stepanek e Hans Roue, que reconstruiram Tanis, a capital do Egito antigo, seus palácios e os templos de Amon e Pftah com um detalhisno realista, aplicável também ao vestuário providenciado por Remigius Geyling (o figurinista de Sodoma e Gomorra de Kertesz e também de Sansom und Delila de Korda).

Meu amigo Sergio Leemann, frequentador assíduo da Giornate del Cinema Muto em Podernone na Itália, viu o filme ano passado na dita Jornada e achou que a sequência da separação do Mar Vermelho não tem nada a dever à mesma sequência de Os Dez Mandamentos de DeMille.

Quando o filme foi exibido em Londres, o enviado do Variety escreveu: “Em termos de direção e produção, Lua  de Israel é suficientemente forte para entrar em competição com o filme de DeMille em qualquer lugar do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Seu êxito na América vai depender de uma  campanha de publicidade eficiente”. Porém isso não aconteceu: Adolph Zukor  e Jesse Lasky, os donos da Paramount, compraram os direitos do filme de Kertesz para arquivá-lo e Lua de Israel só estreou nos Estados Unidos no dia 29 de junho de 1927 numa versão muito reduzida de 63 minutos, distribuída pela independente F.B.O.

Em 1925, Kertesz começa o ano recebendo a noticia do nascimento de mais um rebento, cuja mãe, Franzeska Vondrak, uma figurante de dezoito anos que participava dos filmes da Sascha, havia chamado sua atenção no começo da filmagem de Lua de Israel, sucedendo-se uma relação sentimental entre os dois; só que desta vez a separação foi cordial e Franzeska não guardou nenhum ressentimento de sua aventura amorosa.

A trama do novo filme de Kertesz, intitulado A Boneca de Paris / Das Spielzeug von Paris, adaptação cinematográfica de “Red Heels”, romance da inglesa Margery Lawrence, situa-se na Paris do tempo das vanguardas artísticas. No relato, Célimène (Lili Damita) é o centro de uma “ronda”. Estrela de cabaré e indiscutivel rainha da cidade, ao seu redor se movem uma série de personagens, todos desejando alguma coisa: o velho Visconde de Maudry (Georges Tréville) vê nela sua última oportunidade romântica; Germaine (Maria Asti), antiga amante de Maudry, quer reconquistá-lo, fazendo com que Célimène encontre outro admirador; Miles Seward (Eric Barclay), um insípido diplomata britânico a princípio se aproxima de Célimène de maneira cautelosa e afetada,  mas acaba completamente obcecado em desposá-la; Nan Seward (Marietta Müller) quer casar seu irmão com a igualmente insípida Dorothy Madison (Ria Günzel), cuja posição nobiliária e econômica a torna particularmente interessante; Duval (Hugo Thimig), o gerente do cabaré, quer Célimène no seu palco; Michel Fournichon (Theo W. Shall), o amigo francês de Miles, simplesmente a quer na cama, embora nunca tenha a chance de lhe dizer isso. Quanto a Célimène, ela somente quer ser feliz, desfrutar da vida, do momento, do amor e da fama.

Uma sequência particularmente notável mostrava a inconstante heroína perseguindo Miles sob uma chuva torrencial, que acaba lhe causando a morte por pneumonia no final filmado para exibição na Austria, Alemanha e Inglaterra. Numa outra montagem, que foi vista na França e Espanha,  Célimène não morre,  mas sobrevive, para recuperar sua posição de privilégio na noite parisiense enquanto o seu visconde apaixonado a observa nos bastidores e Miles prossegue sua vida tediosa com a sua prometida Dorothy.

Miguel Fidalgo disse a respeito de A Boneca de Paris: “é um dos frequentes paradoxos da História do Cinema que um filme tão maravilhoso como este esteja hoje virtualmente esquecido”.

Liliane Marie Madeleine Carré, ex-estrela máxima do Casino de Paris, iniciou sua carreira cinematográfica com um pequeno papel em L’Empereur des Pauvres / 1922 (Dir: René Leprince), no qual havia atuado com o pseudônimo de Lili Deslys; depois de interpretar papéis de maior envergadura, mudou definitivamente seu nome artístico para Lili Damita. O filme seguinte de Lili com Kertesz foi A Dançarina Colette / Einspänner Nr. 13, nova adaptação do folhetim “Fiacre No.13” de Xavier de Montépin, que já havia sido levado à tela em 1917. Desta vez, a narrativa se concentra em Lilian (Lili Damita), a desaparecida herdeira de um milionário, encontrada quando bebé por um cocheiro parisiense, criada como sua filha e vítima de um caloteiro astucioso, que havia descoberto sua verdadeira origem. Especialmente interessante foi a contribuição do diretor de arte alemão Paul Leni, que havia aprendido com Max Reinhardt o uso da luz e do espaço. Nele, Kertesz encontrou um temperamento artisticamente parecido com o seu e os dois trabalhariam juntos novamente no filme seguinte do diretor húngaro.  Leni também seguiria mais tarde para Hollywood, onde fez O Gato e o Canário /The Cat and the Canary / 1927, O Papagaio Chinês / The Chinese Parrot / 1927, O Homem que Ri / The Man Who Laughs / 1928; A Última Ameaça / The Last Warning / 1929.

Foi em Paris, enquanto filmava as primeiras sequências de A Dançarina Colette, que Kertesz teve o encontro profissional mais importante de sua vida, um momento que mais tarde recordaria com bom humor: “Vejo que dois homens me observam. Me vigiam durante três dias. Como sou um diretor temperamental,  aproximei-me deles e lhes disse: ’O diretor está nervoso. Queiram retirar-se, por favor, e fechar rapidamente a porta do estúdio?’. Um dos dois homens sussurra algo para o meu assistente e este me diz que Mr. Warner, da América, está me observando e quer me oferecer um emprego”.

Mr. Warner da América não era outro senão Harry Warner, presidente e o mais velho dos irmãos donos dos estúdio de Hollywood que leva seu nome em visita à Europa à busca de novos talentos. Desde sua chegada à França, Harry Warner vinha recebendo boas referências sobre Kertesz e seu filme Lua de Israel,  sobre sua personalidade e caráter forte; vê-lo em ação, confirmou seu entendimento de que encontrara o diretor que estava buscando. A entrevista foi cordial, embora não tivesse ocorrido nenhum ajuste, salvo a declaração de Kertesz de que estava disponível e preparado para iniciar uma nova carreira do outro lado do Atlântico. Harry passa um telegrama para seu irmão Jack, vice-presidente encarregado da produção em Hollywood e lhe pede que consiga uma cópia de Lua de Israel, que a Paramount tinha arquivado. Depois, se despede de Kertesz com a promessa de lhe dar uma resposta num breve período de tempo.

Com a ajuda da Phoebus-Film AG, pequena produtora e distribuidora, integrante  do enorme conglomerado UFA (Universal Film Aktiengesellschaft),  que já havia cooperado financeiramente para a realização de A Dançarina Colette, Kolowrat realizou A Borboleta Dourada / Der goldene Schmetterling / 1926, baseado num musical londrino de 1921, com libreto de Fred Thompson e P.G. Woodehouse e música de Ivor Novello.

Convenientemente atualizado pelos alemães Jane Bess e Adolf Lantz, habituais colaboradores da UFA, o novo filme de Kertesz transcorre nas ruas da capital Britânica  e conta a história de Lilian (Lili Damita), filha adotiva de Mac Farland (Herman Leffler), dono de um restaurante. Ela deseja ser estrela de um espetáculo contra a vontade do pai e de seu apaixonado meio-irmão, Andy (Nils Asther); a aparição de Aberdeen (Jack Trevor), um milionário que manifesta um interesse pessoal e profissional pela jovem, complicará ainda mais a situação. Lilian aceita se casar com Aberdeen mas um dia, durante uma representação, o cabo que a sustenta no seu número se rompe e Lilian, ferida, tem que encerrar sua carreira e os dois jovens são reunidos por Aberdeen, que se sacrifica.

Antes de iniciar a filmagem de A Borboleta Dourada, Kertesz recebeu a notícia de que os irmãos Warner haviam visto Lua de Israel e estavam lhe oferecendo um contrato por um ano com opções renováveis. Kertesz já tinha firmado outro compromisso com o produtor independente Jacob Karol, porém o estúdio norte-americano pagou uma indenização a Karol pela dissolução do referido acordo e, em 10 de maio de 1926, Kertesz assinou em Berlim seu primeiro contrato com a Warner Bros.

Kertesz não fez nenhuma objeção às cláusulas rígidas que lhe foram impostas, pois confiava na sua capacidade para obter o que sempre desejara, aquilo que ele definia como “um filme artística e tecnicamente perfeito”. Foi com esta preocupação em mente, que ele realizaria um punhado de obras-primas do Cinema Clássico de Holywood.

 

8 Responses to “MICHAEL CURTIZ – I”

  1. Saudações Professor!

    Primeira parte, os primeiros dias de um artesão que viria a se tornar um dos grandes cineastas de todos os tempos, entre os quais é um dos meus prediletos, com Ford, Wyler, Ray e Capra.

    Continue , Mestre! Um forte abraço, e boas folias com grandes filmes!

    Paulo Néry

  2. Achei que estava na hora de homenagear Curtiz. Bom Carnaval e bons filmes para você também.

  3. Um texto magnífico e detalhado sobre o início da carreira desse diretor que sempre admirei pela sua versatilidade, virtuosismo e técnica. Muitos críticos torcem o nariz para o estilo “diretor de estúdio” de Curtiz, mas ninguém pode negar que ele foi responsável por alguns dos maiores filmes americanos dos anos 40. Só conhecia a carreira de Curtiz em Hollywood, e este texto foi, como sempre, mais uma aula de cinema. Abraços, Professor.

  4. Obrigado Kalil. Até pouco tempo a carreira européia de Curtiz era pouco conhecida. Esta lacuna foi preenchida pelo admirável livro de Miguel A. Fidalgo, que recomendo a todo fã de Michael Curtiz. Lí com muito interesse o seu artigo sobre Rouben Mamoulian, outro grande diretor do tempo dos grandes estúdios de Hollywood e um dos mais criativos do começo do cinema sonoro.Parabéns.

  5. […] Curtiz fez cerca de 100 filmes para a Warner, mostrando que era um cineasta de qualidades criativas acima dos esquemas de produção do estúdio – realizou grandes trabalhos em todos os gêneros, inclusive aqueles que se tornaram seus cartões de visita nos anos 30: “Anjos de Cara Suja”, “Capitão Blood” e “As Aventuras de Robin Hood”. Curtiz identificou-se com o sistema de trabalho dos grandes estúdios, era conhecido como diretor de mão de ferro, isto é, um verdadeiro ditador nos sets de filmagens, e era odiado por atores e por técnicos por conta de seu gênio difícil. Ficou famoso pela incrível versatilidade com que alternava filmes de ação e aventura com dramas, romances, westerns e até musicais. Sua primeira indicação ao Oscar veio com “Anjos de Cara Suja”, de 1938, mas ganharia a estatueta apenas em 1943, com “Casablanca”. Seu último filme foi “Os Comancheiros”, de 1962, estrelado por John Wayne. Michael Curtiz faleceria naquele mesmo ano, em Los Angeles. Leia mais sobre Michael Curtiz em Histórias de Cinema. […]

  6. Obrigado pela referência ao meu blog. Seu site é muito bom. Vá em frente.Um forte abraço.

  7. excelente trabalho

  8. Obrigado Simões. Prazer em revê-lo. VI ontem um bom western de Joel McCrea: Stranger on Horseback / O Cavaleiro Misterioso / 1955. A paisagem de Cedona, no Arizona é magnífica mas infelizmente a cópia em Anscocolor que estão vendendo, deixa a desejar. McCrea está em plena forma e John McIntire, como sempre, magnífico.Um forte abraço.

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