FILMES POLICIAIS DE JEAN-PIERRE MELVILLE

agosto 16, 2013

Ele foi um dos mais importantes cineastas independentes do cinema francês, emergindo no período imediato após a Segunda Guerra Mundial. Desde a infância, tornou-se um grande admirador da cultura americana, da qual derivaram o seu nome artístico (homenagem ao autor de Moby Dick, Herman Melville) e seus filmes, especialmente os policiais.

Jean-Pierre Melville (1917-1973), cujo verdadeiro nome era Jean-Pierre Grumbach, tinha como  ancestrais  judeus da Alsácia. O pai, homem de negócios, mudou-se para Paris, onde Jean-Pierre nasceu e estudou (no Lycée Condorcet, colégio muito respeitado para alunos da classe média). Em 1924, quando tinha sete anos de idade, Jean-Pierre ganhou de presente de sua família uma câmera Pathé-Baby e logo depois um projetor, que lhe permitia ver lançamentos de filmes recentes em 9.5mm. Graças ao seu projetor ele podia ver quatro ou cinco filmes novos por semana.

Depois do advento do som, seu dia começava às nove horas da manhã em um cinema (o Paramount) e terminava da mesma maneira às três horas da manhã seguinte. Como observou Ginette Vincendeau (Jean-Pierre Melville – An American in Paris, British Film Institute, 2006), “a educação cinematográfica de Melville, na sua voracidade e americanofilia, antecipavam à dos críticos da Nouvelle Vague”.

Em 1937, aos 17 anos, Jean-Pierre prestou serviço militar no “Spahis”, regimento de cavalaria colonial. Em setembro de 1940, o regimento ficou encurralado na Bélgica e ele foi evacuado via Dunquerque e repatriado para a França. No seu retorno, Jean-Pierre  dirigiu-se para Castres no Sul, para onde sua família havia se mudado, juntando-se às redes da Resistência “Libération” e “Combat” sob o nome de Cartier e depois, Melville.

Após a Libertação, a sua cinefilia e familiaridade com o meio cinematográfico levaram Melville a realizar um curta-metragem, 24 Heures de la vie d’un Clown / 1946, semi-documentário de 17 minutos sobre a vida do palhaço Béby do circo Médrano, que poucas pessoas viram e ele sempre renegou veementemente. Depois dessa falsa estréia, o seu “verdadeiro” começo foi mais espetacular – Le Silence de la Mer / 1949, tornou-se um clássico instantaneamente.

Pude ver todos os 13 filmes em longa-metragem de Melville, entre os quais se incluem ainda Les Enfants Terribles / 1950; Quando Leres Esta Carta / Quando Tu Liras Cette Lettre / 1953; Deux Hommes dans Manhattan / 1959; Léon Morin, o Padre (TV) / Léon Morin, Prêtre / 1961; L’Ainé des Ferchaux / 1963; e o extraordinário O Exército das Sombras / L’Armée des Ombres; porém, neste artigo, falo apenas sobre seus filmes policiais ou de gângster: Bob le Flambeur / 1956, Técnica de um Delator / Les Doulos / 1962, Os Profissionais do Crime / Le Deuxième Souffle / 1966, O Samurai / Le Samourai / 1967, O Círculo Vermelho / Le Cercle Rouge / 1970 e Expresso para Bordeaux / Un Flic / 1972.

Melville inaugura a série de filmes policiais com Bob le Flambeur / 1956. É a história de Robert Montagné (Roger Duchesne), conhecido como Bob le Flambeur, ex-gângster, agora na meia-idade e viciado no jogo, que anda sem sorte, mas ainda é uma “lenda viva” em Montmartre. Ele passa suas noites em antros de jogatina e boates (“entre a noite e o dia entre o céu e o inferno”) na companhia de seu velho amigo Roger (André Garet) e do seu jovem protegido Paulo (Daniel Cauchy), sob  o olhar atento do inspetor de polícia local Ledru (Guy Decomble), cuja vida Bob havia salvo no passado. Depois de ganhar algum dinheiro nas corridas, Bob vai para Deauville com Roger, a fim de jogar no cassino, onde perde tudo o que ganhara. Roger fica sabendo por Jean (Claude Cerval), ex-criminoso e agora crupiê, sobre um depósito fabuloso de dinheiro que fora feito no cofre do cassino no ano anterior na véspera do Grand Prix. Bob e Roger planejam arrombar o cofre como um último trabalho, antes de se aposentarem. O assalto é cuidadosamente preparado e ensaiado por um bando reunido para tal propósito. Entretanto, Paulo, que está associado ao projeto, revela o plano para Anne (Isabelle Corey), uma jovem prostituta que lhe fora apresentada por Bob, a fim de impressioná-la. Esta,  ingenuamente, conta tudo a Marc (Gérard Buhr), um rufião e informante da polícia, com o qual ela também vinha dormindo. Anne confessa o seu ato para Bob, que repreende Paulo. Este, para corrigir seu erro, mata o informante antes que ele possa avisar a polícia. Porém eles serão denunciados pela mulher do crupiê (Colette Fleury), inconformada com a quantia que seu marido receberia pela sua colaboração no assalto. Na noite do roubo, Bob não resiste e joga, para passar o tempo enquanto aguarda a hora marcada para o assalto. Sua sorte retorna e ele ganha tanto dinheiro, que se esquece do assalto. O bando é preso pelos homens de Ledru, antes de entrar no cassino e Paulo é morto. Bob e Roger são conduzidos no carro de Ledru, com o dinheiro ganho por Bob no porta-malas. Ledru graceja, dizendo que, com um bom advogado, que ele agora pode pagar, Bob conseguirá obter uma sentença suave. E este acrescenta: ou até requerer uma indenização.

Trabalhando pela primeira vez inteiramente no seu próprio estúdio, na rua Jenner em Paris, com um mínimo de recursos – o que explica a quantidade de cenas filmadas em locação – e ausência de astros, Melville realizou seu primeiro filme policial, inspirado nos filmes americanos desse gênero, porém sem copiá-los servilmente.

Nele já se vislumbram os sinais do estilo Melville: simplicidade, discrição de inspiração documentária (repudio ao pitoresco e aos clichês), ritmo lento mas fluente com abundância de planos,  minuciosidade na encenação, elegância dos enquadramentos. Pode-se identificar também a influência de O Segredo das Jóias / The Asphalt Jungle / 1949 de John Huston. Bob le Flambeur, tal como o filme de Huston, não é um filme sobre aventuras, mas um filme sobre os personagens, os caractéres, os estados d’alma e aborda o mesmo tema da ambição e do fracasso, resultando em um final irônico e cínico.

O ambiente dos pequenos cafés de Montmartre onde os jogadores se reúnem e as noites de Pigalle são reconstituídos habilmente. A intriga evolui dos cabarés ao luxuoso cassino de Deauville, nas salas de jogo que servem de cenário natural a várias sequências. Todo esse ambiente foi muito captado pela câmera de Henri Decae (um dos colaboradores mais assíduos do diretor), que usou as condições precárias da produção como estímulo para a inovação, uma qualidade que o tornou muito  requisitado pelos cineastas da Nouvelle Vague.

Os sentimentos, sempre adequados e lógicos e os diálogos de Auguste Le Breton, um especialista no gênero, dão um tom de verdade às situações e Roger Duchesne, ator de segundo plano nos anos quarenta, retorna às telas em um papel principal, dando conta do recado com sua interpretação minimalista.

Em Técnica de um Delator, após sua saída da prisão, Maurice Faugel (Serge Reggiani) mata Gilbert (René Lefevre) um receptador, porque ele havia assassinado sua antiga mulher, Arlette. Gilbert estava examinando jóias roubadas por Nuttheccio (Michel Piccoli) e Armand (Jacques De Leon), cuja visita ele estava aguardando. Quando os dois homens chegam, Faugel escapa sem ser visto, enterra o dinheiro e as jóias, assim como a arma do crime. No apartamento de sua nova amante Thérèse (Monique Henessy), Faugel recebe seus amigos Jean (Aimé de March) e Silien (Jean-Paul Belmondo), notório informante da polícia e amigo do Inspetor Salignari (Daniel Crohem). Silien traz um equipamento para arrombar cofres, do qual Faugel necessita para roubar uma mansão em Neuilly com seu comparsa Rémy (Philippe Nahon). Faugel e Rémy tomam o metrô para Neuilly. Silien telefona para Salignari de um telefone público, retorna ao apartamento de Thérèse, espanca-a e arranca dela o endereço de seu “homem”. Mal o assalto é iniciado, Faugel avista os carros da polícia. Numa tentativa de fuga, Salignari mata Rémy e é morto por Faugel, que fica ferido. Faugel é recolhido por um carro. Ele acorda em casa de Jean diante da mulher deste, Anita (Paulette Breil) e um médico tratando de seu ferimento. Faugel parte à procura de Silien, certo de que este o traíra. Silien é abordado pelo Inspetor Clain (Jean Desailly), que lhe pede para informar quem é o cúmplice de Rémy (sem saber que este é Faugel) e também o interroga sobre a morte de Gilbert. Ele obriga Silien a telefonar para vários bares, a fim de encontrar Faugel. Este é preso em um bar e interrogado por Clain. Silien desenterra as jóias e vai à boate de Nuttheccio, The Cotton Club, onde conversa com sua antiga amante, Fabienne (Fabienne Dali), que agora está com Nuttheccio. Ele convence Fabienne a confessar que ela havia ouvido um tiro de revólver, enquanto estava esperando por Nuttheccio e Armand fora da casa de Gilbert. Silien mata Nuttheccio e Armand no escritório de Nuttheccio e faz com que a morte pareça o resultado de uma briga entre os dois pelas jóias, que ele deixa no cofre. Faugel é solto e descobre que a informante fôra Thérèse, que trabalhava para a polícia e que  Silien encenou a morte de Nuttheccio e Armand, para livrá-lo da acusação de ter matado Gilbert. Silien ruma para sua casa em Ponthiery, onde é esperado pelo alemão Kern (Carl Studer), contratado na prisão por Faugel, para matá-lo pela suposta traição. Faugel parte desesperadamente para impedir que Kern mate Silien. Ele chega na casa primeiro mas é confundido com Silien e morto por Kern. Quando Silien chega, começa um tiroteio, no qual ambos Kern e Silien também morrem.

O aspecto de Técnica de um Delator que atrai mais a nossa atenção é a sua mudança repentina na narrativa. Durante quase noventa minutos de filme, acreditamos que Silien é um doulos (informante). Seu telefonema para Salignari, o espancamento de Thérèse, a apropriação das jóias, a encenação elaborada das mortes de Nuttheccio e Armand, tudo contribui para que o espectador, tal como Faugel, acreditem na traição de Silien. Quando este revela que Thérèse, e não ele, foi o delator, ficamos perplexos ao sabermos de tudo o que havia acontecido.

Na percepção de G. Vincendeau, como foi anunciado em uma nota que aparece após os créditos do filme (“Devemos escolher. Morrer … ou mentir?”), cada personagem em Técnica de um Delator mente (ou pode estar mentindo) para alguém em determinado momento – Gilbert sobre Arlette, Faugel sobre Gilbert, Silien sobre Faugel, Thérèse sobre Silien, Clain sobre a ameaça do esquadrão anti-droga para Silien, etc. Até a série de revelações de Silien pode ser mentira. Ele é apoiado por Jean, porém ambos podem estar mentindo. Para Denitza Bantcheva, que escreveu um livro sobre Melville (Jean-Pierre Melville: de l’oeuvre à l’homme, Librairie Bleue, 1996), o maior mentiroso é sem dúvida o cineasta, que nos conduz de uma falsidade para outra.

Jean-Pierre Melville conhece todos os recursos e todas as manhas de seu ofício. Seu filme é solidamente composto, tem bons intérpretes (com destaque para Reggiani e Belmondo, o primeiro, um tanto esquecido desde Amores de Apache / Casque d’or / 1952 e o segundo, ascendendo ao estrelato após Acossado / A Bout de Souffle / 1960), e Melville mantém sempre o interesse pela trama à qual não falta mistério e suspense bem como numerosas cenas de violência, como a tríplice fuzilaria final, que parece uma transposição, para não dizer um pastiche, de um drama shakespereano.

Os Profissionais do Crime começa quando Gustave “Gu Manda (Lino Ventura), um gângster perigoso e outros dois presidiários fogem da prisão. Um deles morre na tentativa. Gu e o outro escapam num trem de carga. Logo, o outro homem salta do trem e Gu fica sozinho. Na sua boate em Marselha, o gângster Paul Ricci (Raymond Pellegrin) é informado de que um comboio carregando platina sairá da cidade no dia 28 de dezembro. Contra a sua vontade, seu amigo Jeannot (Albert Dagnant) vai a Paris para matar o gângster rival Jacques le Notaire (Raymond Loyer). Na boate de Simone, conhecida como  “Manouche (Christine Fabréga), Jeannot mata Jacques e é ferido. O Inspetor Blot (Paul Meurisse) chega e prende os frequentadores do local. A fuga de Gu é anunciada. Dois bandidos ameaçam “Manouche” e Alban (Michel Constantin), seu fiel empregado. Gu chega e descobre que o gângster Jo Ricci (Marcel Bozuffi), irmão de Paul, os enviara para chantagear “Manouche”; Gu mata os bandidos. Alban e Manouche levam Gu para um esconderijo. Paul Ricci visita o moribundo Jeannot e seu irmão Jo. De volta a Marselha, Ricci sugere a seus capangas Antoine  (Denis Manuel) e Pascal (Pierre Grasset), que Orloff (Pierre Zimmer) substitua Jeannot no assalto. Mas Orloff não aceita a proposta. Blot relaciona a morte dos bandidos à fuga de Gu, faz uma visita a Jo Ricci e lhe diz que Gu está procurando por ele. Gu parte para se vingar de Jo Ricci, mas desiste no último minuto. “Manouche” pede a seu amigo Theo (Louis Bougette) ajuda para obter papéis de identidade falsos para Gu e um barco para a sua fuga para Marselha. Theo fala com seu amigo Orloff sobre Gu. Orloff se prontifica a arrumar os papéis e pede a Theo que informe Gu sobre o assalto. Este chega a Marselha e, apesar da oposição de “Manouche”, concorda em participar do assalto por dinheiro. Paul Ricci, seu velho amigo o admite no bando, sob protesto de Antoine e Pascal. Gu, Paul, Antoine e Pascal praticam o assalto com sucesso, matando dois policiais. A polícia descobre o roubo e os assassinatos. Blot chega de Paris para fúria do inspetor local Fardiano (Paul Frankeur). Gu é preso por policiais disfarçados de gângsteres, que o enganam, fazendo com que ele revele o nome de Paul. Este é preso e ambos são interrogados brutalmente. Perturbado por ter sido apontado como informante, Gu tenta se matar. Jo Ricci chega a Marselha para ajudar seu irmão e se vingar de Gu. Orloff se oferece para procurar Gu dizendo que o matará, se ele tiver provas de sua culpabilidade. Gu foge do hospital da prisão, sequestra Fardiano, obriga-o a confessar por escrito que havia mentido sobre sua traição e o mata. Rendido por Orloff, Gu derruba-o com um soco e vai se confrontar com Jo, Antoine e Pascal. Gu mata os três mas é alvejado por Antoine e um policial. Gu morre nos braços de Blot, pronunciando o nome de “Manouche” e lhe entregando a confissão de Fardiano, que o inspetor dá um jeito de ser colhida no chão por um jornalista.

Melville confirma seu gosto pelo filme noir e apura seu estilo, já esboçado em Bob le Flambeur e Técnica de um Delator. Tal como neste último, Os Profissionais do Crime aborda o tema da traição. A última terça parte do filme, a partir da prisão de Gu, mostra-o lutando para “limpar seu nome” da mácula de ter traído Paul (uma traição acidental engendrada por Blot e retransmitida para a imprensa por Fardiano). Raiva e vergonha levam Gu a fugir, matar Fardiano e depois Jo, Antoine e Pascal e finalmente a morrer alvejado pelas balas de Antoine e de um dos assistentes de Blot. Foi o orgulho de Gu que o levou à morte. Ele poderia ter partido para uma outra vida (le deuxième souffle), mas procurou obstinadamente salvar sua honra profissional.

Naquele momento, nada mais contava, nem a fuga com Manouche nem o dinheiro. Ele se perde em uma espiral mortífera, da qual conhecia a saída. A certa altura da narrativa ele diz para Manouche: “De qualquer forma não voltarei para a prisão. Eu joguei e perdí”. Tal como Reggiani e Belmondo em Técnica de um Delator, Lino Ventura encarna um herói literalmente suicida, um gângster trágico, como diria Robert Warshow. (The Immediate Experience, artigo “The Gangster as a Tragic Hero”, Harvard University, 2002).

O filme é longo (duas horas e trinta minutos) e se desenvolve em um ritmo lento, porém nele não existe nem um plano, nem uma palavra que se possa tirar sem romper o equilíbrio do conjunto. O realizador esforça-se para filmar de acordo com a duração real dos acontecimentos. Quando ele descreve o assalto, tudo é cuidadosamente mostrado, inclusive a espera tediosa e angustiante  da chegada do carro blindado. Melville rejeita o uso de uma trilha sonora bombástica para envolver o espectador emocionalmente, preferindo trabalhar com o silêncio, um mínimo de diálogo e sons naturais, obrigando-o a observar em vez de ficar preocupado com a natureza do evento.

Logo no início da narrativa, após a apresentação de um texto contendo um aforisma fatalístico (”A sa naissance il n’est donné à l’homme qu’un seul droit: le choix de sa mort. Mais si ce choix est commandé par le dêgout de la vie, alors son existence n’aura été que pure dérision”), segue-se outra sequência admirável, a fuga silenciosa da prisão, que lembra aquela de Um Condenado à Morte Escapou / Un Condamné a Mort s’est Echapé de Robert Bresson e demonstra a poderosa economia de meios do diretor, seu cinema narrativo simples atingindo o máximo de abstração e refinamento. A perfeição técnica da mise-en-scène de Melville encontrará a  sua apoteose no seu próximo trabalho.

A trama de O Samurai resume-se assim: Jef Costello (Alain Delon), assassino de aluguel, rouba um carro e forja um álibi com sua amante Jane Lagrange (Natalie Delon) e um grupo de jogadores de pôquer, antes de executar com sucesso um contrato para matar o diretor de uma boate. Entretanto, ele é visto pela pianista da boate, Valérie (Caty Rosler). Jef  livra-se de sua arma e volta a se reunir com o grupo de jogadores de pôquer mas é preso em uma batida por parte da polícia. A pianista e o garçom da boate negam tê-lo visto ao inspetor encarregado da investigação (François Perier). Outro amante de Jane, Wiener (Michel Boisrond), lembra-se de que viu Jef saindo do edifício dela. Embora acreditando que Jef e Jane são culpados, o inspetor é obrigado a soltá-los, por falta de uma prova mais robusta.  Os policiais  seguem seus passos, mas perdem o seu rastro no metrô. Jef vai receber o dinheiro pelo assassinato, porém é alvejado por um homem (Jacques Leroy), enviado pelo seu mandante traidor e ainda desconhecido. Retornando ao seu quarto de hotel, Jef cuida de seu ferimento. O mandante e seus cúmplices discutem se devem eliminá-lo, pois sua prisão seria um risco em potencial. Enquanto Jef volta à boate para falar com a pianista, a polícia instala um gravador no seu quarto. Jef aborda Valérie e vai para o apartamento dela, querendo saber quem foi o mandante do crime. A polícia ameaça Jane brutalmente em seu apartamento mas a jovem permanece calada. Retornando ao seu quarto, Jef descobre o gravador e o desativa. Pouco depois, é surpreendido pelo homem que o alvejara. Este lhe oferece o dinheiro que o mandante lhe devia e mais dois milhões de francos para executar outro serviço. Jef força-o a revelar a identidade do mandante de ambos, Olivier Rey (Jean-Pierre Posier). A polícia põe em prática uma operação complexa para seguir Jef no metrô mas perde-o de vista novamente. Ele rouba outro carro, visita Jane para se despedir e mata Olivier Rey em seu apartamento. Em seguida, Jef dirige-se à boate para matar a pianista  que era o alvo de seu novo serviço. Porém ele havia descarregado sua arma e, quando finge que vai atirar, é alvejado pelas costas pela polícia e morre.

Ponto culminante da obra de Melville, o filme apresenta logo no início uma frase que o diretor finge ter extraído do “Bushido” (código de honra dos antigos guerreiros japoneses) mas que, na verdade, foi inventado por ele: “Il n’y a pas de plus profonde solitude que celle du samourai si n’est celle du tigre dans la jungle, peut-être”. É uma chave simbólica do espetáculo.

Melville sempre manifestou, nos seus filmes sobre a Resistência como nos seus filmes policiais, uma predileção pelos solitários e anônimos, pelos combatentes nas sombras, marginais de fato e de temperamento. Desde o primeiro plano, Melville já mostra Jef sozinho, fumando, deitado na sua cama à direita da tela, em um quarto sombrio, asceta e espartano, no qual o único sinal de humanidade é o piar do passarinho na gaiola. Ele é um homem quase invisível, mesmo na sua esfera privada, como a sua “profissão” exige.

Depois, com calma e frieza (maneira com que agirá durante toda a narrativa), Jef veste a capa de chuva e o chapéu enquanto seu olhar azul contempla sua imagem elegante e glacial no espelho. Nesta sequência, o cineasta forja o tom hierático e silencioso do filme e Alain Delon reencontra o comportamento, o vestuário e o angelismo mórbido de Alan Ladd em Alma Torturada / This Gun for Hire / 1942. Ao sair dalí, ele vai e vem com uma inexpressividade absoluta, quase que como uma sombra, ao encontro do seu destino trágico.

Os diálogos são raros durante todo o desenrolar da ação e as mortes e atos do matador melancólico, assim como o ritmo, são de uma precisão implacável, o diretor procurando como sempre respeitar a “integridade da ação”, um respeito pela duração, próximo do tempo “verdadeiro”. A utilização habilidosa do complexo urbano  (vg. os corredores do metrô) e dos interiores (o interrogatório na delegacia, a execução de Jef na boate), magnificamente fotografados por Henri Decae e o emprego inspirado da montagem, também contribuem muito para o êxito da realização.

A ação de O Círculo Vermelho tem início em Marselha, onde o Inspetor Mattei (André Bourvil) está escoltando Vogel (Gian Maria Volonté), um criminoso notório, em um trem noturno para Paris. Durante a noite, Vogel se liberta das algemas e salta pela janela do trem. Ao mesmo tempo, Corey (Alan Delon) está sendo libertado da prisão em Marselha. Graças à informação que lhe foi fornecida por um guarda, ele fica a par do sistema de alarme de uma joalheria de alta classe da Place Vendôme em Paris. Corey visita Rico (André Ekyan), um ex- amigo que o traíra e vive agora com a sua antiga amante(Ana Douking). Corey leva dinheiro e uma arma do cofre de Rico e, depois, num salão de bilhar deserto, livra-se de dois capangas de Rico que o perseguiam. Ele compra um carro e segue em direção a Paris. Entrementes, Vogel foge de uma busca massiva da polícia e em uma lanchonete de beira de estrada, penetra na mala destrancada do carro de Corey. Após escapar de uma batida policial, Corey estaciona em um lugar deserto e diz a Vogel para sair da mala. A amizade entre os dois é reforçada, quando Vogel mata mais dois capangas de Rico que queriam vingar o patrão.  Em Paris, Mattei é repreendido pelo Diretor de Assuntos Internos por ter deixado Vogel fugir. Mattei procura vários de seus informantes , inclusive o dono de boate, Santi (François Perier), conhecido de Vogel. Corey e Vogel decidem assaltar a joalheria da Place Vendôme com a ajuda de um perito no tiro ao alvo, Jansen (Yves Montand), um ex-policial alcoólatra. Corey e Jansen se encontram na boate de Jansen enquanto este é preso. Jensen inspeciona o local do assalto e providencia balas especiais com as quais pretende imobilizar o sistema de alarme da joalheria. Corey procura um receptador (Paul Crauchet). Rico, ainda procurando se vingar de Corey, fica sabendo do plano do assalto pelo guarda da prisão. Corey, Vogel e Jansen executam o roubo com sucesso. Entretanto, o receptador, por ordem de Rico, recusa as jóias roubadas. Mattei pressiona Santi, prendendo o filho deste por tráfico de drogas. Corey consegue o nome de outro receptador. Mattei descobre a identidade deste, presumivelmente através de Santi, e toma seu lugar. Ele atrai Corey e Jansen para uma casa isolada no campo. Apesar da ajuda de Vogel, que aparece no instante em que Mattei vai prender seus cúmplices, os três homens são mortos pela polícia.

Dois malfeitores se cruzam. Corey saiu da prisão. Vogel fugiu. Com a cumplicidade de um ex-policial, que se tornou alcoólatra, eles organizam um roubo à uma joalheria. Mas sem contar com  a tenacidade do comissário Mattei.

O título do filme se explica por uma citação atribuída ao Buda (“Quand les hommes, même s’ils  s’ignorent,  doivent se retrouver un jour, tout peut arriver à chacun d ‘entre eux, et ils peuvent suivre des chemins divergents, au jour dit, inexorablement, ils seront réunis dans le cercle rouge”), que aparece na tela antes dos letreiros de apresentação. Os três assaltantes solitários, prisioneiros do seu destino, impotentes diante da fatalidade, serão reunidos no “círculo vermelho”, no desenlace trágico.

Melville confere intensidade dramática a uma trama policial convencional, construída através de cenas compostas nos seus mínimos detalhes com sobriedade e sofisticação. Ele orquestra grandes momentos de cinema recorrendo a uma dilatação angustiante dos planos, raridade de diálogos e  utilização percuciente dos enquadramentos como, por exemplo, nos mais de vinte minutos do assalto, durante o qual os assaltantes não trocam nenhuma palavra entre si, para que o espectador possa se concentrar nas suas ações,  meticulosamente filmadas pelo cineasta.

Todos os atores estão impecáveis mas o desempenho de Bourvil (num papel bem diferente do que aqueles que ele estava acostumado a interpretar), como o policial solitário que mora em um apartamento triste e frio povoado por apenas três gatos (lembrando o passarinho de Jef Costello em O Samurai), foi mais pungente, porque ele estava muito doente na ocasião da filmagem e viria a falecer poucos dias após o lançamento do filme.

Expresso para Bordeau, começa quando uma quadrilha – Simon (Richard Crenna), Marc (André Pousse), Paul (Riccardo Cucciolla) e Louis (Michael Conrad) – sob uma tempestade, assalta um banco situado à beira-mar em Saint-Jean-de-Monts. Um caixa aciona o alarme, alveja Marc e é morto. O bando escapa, enterra o produto do roubo e levam Marc para uma clínica. Enquanto isso, em Paris, o Inspetor Édouard Coleman (Alain Delon), acompanhado por seu assistente Morand (Paul Crauchet), faz a sua ronda, investigando o assassinato de uma mulher e o furto de um ricaço (Jean Desailly) por um garoto de programa, encontrando um informante travesti (Valérie Wilson) e interrogando três batedores de carteiras. Coleman vai à boate de seu amigo Simon ver a esposa deste, Cathy (Catherine Deneuve), que é sua amante. Os gângsteres se encontram no Louvre. Para evitar que Marc fale, Simon, Louis e Paul, entram na clínica disfarçados de enfermeiros, tentando removê-lo e, não conseguindo seu intento, mandam Cathy, disfarçada de enfermeira, aplicar uma injeção letal no dito paciente. O corpo (não identificado) de Marc é examinado por Coleman no necrotério. Coleman e Cathy se encontram em um quarto de hotel. Simon, Louis e Paul planejam seu próximo golpe (financiado pelo produto do assalto ao banco), o roubo de duas malas cheias de droga conduzidas por Mathieu (Léon Minisini) no trem Paris-Lisboa. Coleman fica sabendo do transporte da droga através do travesti informante e decide deixar que a polícia da fronteira prenda o interceptor. Porém Simon chega ao trem primeiro por meio de um assalto ousado. no qual ele desce por um cabo de um helicóptero, entra no leito onde está Mathieu, derruba-o com um soco, apodera-se das duas malas e depois é trazido de volta pelo mesmo cabo até o helicóptero. A identidade de Marc é descoberta e Coleman prende Louis que revela o envolvimento de Simon. Paul se suicida para não ser preso. Simon se esconde em um hotel e tenta escapar com Cathy, mas é impedido por Coleman, que havia grampeado o telefone deles. Coleman alveja Simon aparentemente em auto-defesa embora transpareça que Simon não estava armado e teria na verdade “cometido suicídio”. Coleman avista Cathy que estava esperando Simon, porém não a prende. Ele recebe outro chamado da central e retoma a sua ronda na companhia de Morand, visivelmente perturbado.

Um balneário fustigado pela chuva, um banco isolado e gângsteres em ação. A sequência de abertura do último filme de Melville é plasticamente brilhante, apesar da incongruência da possibilidade de existir um estabelecimento bancário em um lugar urbano, como que esperando ser assaltado.

O filme todo é um exercício de estilo, como sempre despojado, distanciado e detalhado, mas recorrendo a certos efeitos fáceis como a sequência do trem e do helicóptero que, embora excitante, é um tanto inverossímil e filmada com miniaturas bem visíveis, com prejuízo para a credibilidade desta parte do espetáculo. Por outro lado, Melville não se aprofunda no relacionamento entre Coleman, Simon e Cathy; parece mais interessado na ação física do que nos desejos e motivações dos participantes do triângulo amoroso, deixando algumas coisas mal explicadas.

Curiosamente, Catherine Deneuve pronuncia apenas três palavras em uma hora e quarenta minutos de projeção. Como explicou Melville, ela aceitou fazer um papel de participação, porque compreendeu que, sendo a única mulher do filme, de repente sua presença tornou-se importante. O verdadeiro projeto em comum de Melville e Catherine seria o próximo filme dele porém, infelizmente, o mais americano dos cineastas francêses veio a falecer alguns meses depois da estréia de seu derradeiro longa-metragem.

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