A TRILOGIA DE GUERRA DE ROBERTO ROSSELLINI

outubro 2, 2017

Em três anos, Roberto Rossellini conseguiu fazer três filmes, Roma Cidade Aberta / Roma Città Aperta / 1945, Paisà / Paisà / 1946 e Alemanha Ano Zero / Germania Anno Zero / 1947, trilogia ligada às consequências da Segunda Guerrra Mundial na Itália, mas sobretudo por um olhar mais verdadeiro da realidade.

Roberto Rosselini

Como escreveu Carlo Lizzani, Roma Città Aperta é o primeiro testemunho artístico sobre a resistência italiana: é o quadro vivo de uma situação que fêz dos “homens da rua”, das mulheres, das crianças, os verdadeiros protagonistas da nova história civil de nosso país (Le Cinéma Italien, Éditeurs Français Réunis, 1955). Pode não ter sido o primeiro filme italiano a se inscrever na corrente neorealista (muitos apontam Obsessão / Ossessione de Luchino Visconti / 1942 como o primeiro filme neorealista), porém foi sem dúvida o que causou o maior impacto no seu lançamento, projetando-se no mundo inteiro. Os roteiristas foram Sergio Amidei, Federico Fellini e Roberto Rossellini.

Em 1944, o engenheiro Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), está sendo procurado pela Gestapo e, na sua fuga, encontra-se com outras pessoas implicadas na luta pela liberdade durante a ocupação alemã, aqueles que transformaram sua aflição e sua penúria em uma coragem e força de vontade invencíveis. Ele se refugia na casa de seu amigo Francesco (Francesco Grandjaquet), seu amigo tipógrafo, que trabalha para a imprensa clandestina. Francesco está prestes a se casar com Pina (Anna Magnani), uma viúva, que está esperando um filho seu, e é mãe de um menino, Marcello (Vito Annichiarico), organizador, de atos de sabotagem contra os nazistas, juntamente com outros meninos. Pina põe Manfredi em contato com o padre Don Pietro (Aldo Fabrizzzi), que luta contra a barbárie, dando cobertura às ações da resistência.

Aldo Fabrizzi e Marcelo Pagliero em Roma Cidade Aberta

Giovanna Galletti e Harry Feist em Roma Cidade Aberta

Maria Michi e Giovanna Galletti em Roma Cidade Aberta

Francesco, é preso no dia de seu casamento. Desesperada, Pina corre atrás do caminhão que leva os prisioneiros, e é morta por um tiro na frente do filho. A amante de Manfredi, Marina (Maria Michi) – atriz do teatro de revista, que se prostituiu para fugir da pobreza, e se corrompeu pela droga fornecida por uma lésbica, Ingrid (Giovanna Galletti), a serviço da Gestapo -, informa para a agente nazista o seu paradeiro. Manfredi, Don Pietro, e um desertor austríaco que havia se refugiado junto ao padre, são presos. O major da SS (Harry Feist), interroga os prisioneiros. O desertor se enforca. Torturado brutalmente, Manfredi morre, sem trair seus companheiros. Don Pietro, também é executado. Inspirado na história real do padre Don Morosini, morto pelos alemães, Roma Cidade Aberta despe-se de todo o artifício, para ser uma testemunha da vida dos “partiggiani”, destacando três símbolos do sacrifício desses verdadeiros mártires, que são Pina, Manfredi e Don Pietro.

Rosselini e Anna Magnani na dublagem de Roma Cidade Aberta

Como observou Lizzani, “o padre e o comunista lutam unidos pela mesma causa e, atrás deles, se agita todo um bairro popular de Roma, com seus imóveis miseráveis e seus pátios interiores, onde a história de cada um é a mesma de todos, onde os sofrimentos, as esperanças e as alegrias são comuns. A força de Roma Cidade Aberta está nesta multiplicação de elementos humanos reunidos organicamente em uma unidade superior”. Observo que a cena do saque à padaria que se nega a abastecer a população é uma prova do espirito de resistência coletiva, que existe em todo o filme.

Cenas de Roma Cidade Aberta

Ao contrário do que muitos pensam, não houve improvisação nem amadorismo. Rossellini e sua equipe sabiam o que estavam fazendo. A encenação foi muito bem planejada e executada. Como compreendeu Peter Brunette (Roberto Rossellini, Oxford University, 1987), o filme foi visto como um desafio direto ao cinema convencional da época – leia-se o cinema de Hollywood -, mas é de fato um dos trabalhos mais convencionais de Rossellini pelo menos em termos de suas estruturas narrativa e dramática. Os personagens são imaginários; as cenas se sucedem em um ritmo ininterrupto, tal qual em um filme de ação, e algumas são de grande impacto emotivo como a da morte de Pina correndo atrás do caminhão que leva Francesco prisioneiro; o quartel general da Gestapo é um lugar estilizado (falsa aquela contiguidade entre a sala de tortura e o salão recreativo dos oficiais, onde se ouve uma música de Beethoven e se bebe champagne); os artistas principais são profissionais; a construção da narrativa é muito bem feita, alongando-se as cenas à medida em que a história avança e se torna cada vez mais trágica.

Anna Magnani e Aldo Fabrizzi em Roma Cidade Aberta

Aldo Fabrizzi em Roma Cidade Aberta

Aldo Fabrizzi em Roma Cidade Aberta

O aspecto “realista” da obra, deve-se precisamente à descrição do presente imediato, às péssimas condições de realização obrigando uma filmagem quase sempre em exteriores e com iluminação deficiente ou intermitente, com um fundo musical relativamente inexistente, e principalmente à humanidade, à naturalidade das cenas (v. g. a conversa entre Pina e Francesco na escada pensando inocentemente sobre o futuro; a confissão de Pina para Don Pietro caminhando na rua – quando ela pergunta: “Cristo não nos vê?”; a imagem de São Roque ao lado da estatueta de uma mulher nua – quando Don Pietro vira a imagem religiosa de costas para esta última; os garotos levando palmadas ao chegarem em casa depois de praticarem uma sabotagem; Don Pietro nocauteando o velho paralítico com a frigideira; o fuzilamento do padre amaldiçoando os bárbaros e logo, arrependido, pedindo perdão a Deus por sua palavras; os meninos assobiando atrás das grades diante do fuzilamento do sacerdote em sinal de apoio etc.). São momentos que nos comovem, porque parece que conhecemos pessoalmente essas pessoas. Ou, como disse Gian Pero Brunetta (Cent’anni di cinema italiano, 2. Dal 1945 Al Giorni Nostri, Laterza, 2004), “as pessoas vêem a história de Manfredi, Don Pietro e da senhora Pina e a sentem como parte do próprio corpo, do próprio sangue”. Ou, como disse Ingrid Bergman, anos depois, em uma entrevista na TV: “Eram atores que estavam fazendo aqueles papéis, mas pareciam gente de verdade”.

Tal como Roma Cidade Aberta, Paisà e Alemanha Ano Zero também possuem uma boa dose de ficção e sentimentalismo (tal como aliás ocorreu em outros filmes na mesma linha, por exemplo, Vítimas da Tormenta / Sciuscià / 1946 e Ladrões de Bicicletas / Ladri di Bicicletti / 1948, ambos de Vittorio De Sica). Paisà se compõe de seis narrativas independentes, tendo por contexto a libertação progressiva da Itália pelos Aliados e pela resistência Partigiana. Seis pequenas histórias de conteúdo dramático e doloroso, todas relacionadas com a situação catastrófica na qual o país está mergulhado no final da Segunda Guerra Mundial.

Carmela Sazio em Paisà

No primeiro episódio, em 10 de julho de 1943, a frota americana desembarca na Sicília. Um grupo de soldados chega em uma cidade, que os alemães abandonaram naquela mesma manhã. Eles são guiados por uma jovem italiana, Carmela (Carmela Sazio) através de um campo minado. Ela fica sozinha em uma antiga torre abandonada com Joe (Robert Van Loon), um soldado americano de New Jersey, enquanto os outros fazem um reconhecimento do lugar. Eles tentam desastradamente se comunicar. Joe é abatido por uma bala alemã e outros alemães não tardam a chegar. Carmela esconde-se, pega o rifle de Joe, e mata um alemão. Quando os americanos chegam, eles pensam que Joe foi morto por Carmela, e a almadiçoam. Os alemães olham do alto de um rochedo de onde jogaram Carmela, cujo corpo encontra-se estendido no mar lá em baixo.

Dotz M. Johnson e Alfonsino Pasca em Paisà

No segundo episódio, em Nápoles, um soldado negro (Dotz M. Johnson), completamente embriagado, é cercado por garotos engraxates. Um deles (Alfonsino Pasca), o conduz para um teatro de marionetes. O soldado, ainda muito tonto, vê o boneco branco que representa um cruzado batendo em um boneco preto que representa um mouro, e salta para o palco em defesa de sua raça, gerando uma confusão no auditório. O menino o leva para fora e, quando o soldado adormece, ele lhe rouba as botas. Alguns dias depois, o soldado, que pertence à polícia militar, reencontra o pequeno ladrão, e ordena que ele lhe devolva as botas. Decidindo levá-lo até onde mora, a fim de que seja repreendido pelos seus pais, descobre que estes foram mortos em um bombardeio, e que o menino vive em um lugar paupérrimo com outras pessoas indigentes. Perturbado, Joe afasta-se dali rapidamente.

Maria Michi e Gar Moore em Paisà

No terceiro episódio em Roma, no dia 4 de junho de 1944, a população acolhe em delírio os libertadores americanos. Seis mêses mais tarde, a jovem Francesca (Maria Michi), que caiu na prostituição por necessidade, aborda um soldado americano, Fred (Gar Moore), que está inteiramente bêbado. Ela o leva para um quarto de pensão, e Fred lhe conta que, no dia da Libertação, conheceu uma jovem adorável e inocente, Francesca, porém nunca mais conseguiu encontrá-la. A prostituta percebe que é ela que ele está procurando, e deixa com a proprietária seu antigo endereço, para que Fred a procure, quando acordar na manhã seguinte. Ela o aguarda em vão, sob a chuva, diante do prédio onde os dois se encontraram pela primeira vez. Fred rasgou seu bilhete. Para ele, não passa de um endereço de mais uma prostituta entre tantas outras. Ele não a reconhecera.

Renzo Avanzo e Harriet White (à direita) em Paisà

No quarto episódio, em Florença, Massimo (Renzo Avanzo), um italiano desejoso de se reunir com sua mulher e seu filho, e Harriet (Harriet White), uma enfermeira americana da Cruz Vermelha à procura de seu amante, o pintor Giorgio Morandi, que se tornara um um grande chefe da resistência sobo nome de Lupo, atravesssam a cidade dividida pelos combates de um lado a outro do Rio Arno. No caminho, cuidando de um homem agonizante, a enfermeira fica sabendo que Lupo está morto.

Os capelães americanos e os padres em Paisà

No quinto episódio, os monges de um convento na área da Emilia-Romagna, acolhem três capelães americanos. Quando eles descobrem que um dos capelães é um pastor protestante e o outro um rabino judeu, os franciscanos decidem oferecer seu jejum a Deus para a conversão daquelas “almas perdidas”

 

Cena do quinto episódio de Paisà

No sexto episódio, os pântanos do delta do Pó são o cenário de lutas sangrentas. Dale (Dale Edmunds), um oficial americano que orienta os resistentes e um destes (Cigolani), enterram o cadáver de um partegiano, que encontraram boiando no rio. Ilhados e sem recursos, os americanos e os resistentes são inevitavelmente presos, mas enquanto os americanos são feitos prisioneiros, os resistentes recebem o tratamento de criminosos comuns. Os alemães os colocam em um bote, e os jogam no rio, um a um, para que morram afogados. No momento em que os últimos dois corpos de partegianos caem no rio, uma voz over diz: “Isto aconteceu no inverno de 1944. No começo da primavera a guerra já havia terminado”.

Filmagem de Paisà Episódio do Vale do Pó

Após Roma sob a tormenta, Rosselllini filma em Paisà os derradeiros sobressaltos da guerra. A intenção foi fazer um filme que de certa forma abrangesse a totalidade da Itália e refletisse honestamente, nos moldes de Roma Cidade Aberta, o quê os realizadores encontraram nas suas viagens pelo país. Eles tiveram uma idéia geral sobre o filme antes que a filmagem começasse, porém o roteiro (novamente de Rossellini, Amidei e Fellini) nunca ficou realmente concluído. Personagens, enredo e locações foram contínuamente e às vêzes drásticamente mudados, para corresponderem mais às pessoas e aos lugares, que eles encontraram no decurso dos seis mêses de seu trajeto, durante o qual eles viram uma Itália que não conheciam, uma paisagem carregada de desagregação e desassossego.

Paisà mostra os tormentos físicos e espirituais de uma coletividade humana nas montanhas da Sicília, nos escombros de Nápoles, nas ruínas romanas do pós-guerra, nas praças de Florença, na planície húmida do delta do Pó e em um monastério dos Apeninos, que constitutem o pano de fundo para os episódios concisos e sutilmente conexos. Tal como em Roma Cidade Aberta, Rossellini descreve o presente imediato, intenso e palpitante, desta vez procurando dar uma visão sintética de uma Itália convulsionada pelos acontecimentos belicosos recentes, usando mais atores desconhecidos, clímaxes rápidos e inesperados no final de cada história (v. g. quando Harriet é subitamente informada da morte de Lupo), um fundo musical quase despercebido, e uma breve narração em voz over sobre cenas de atualidades especialmente no começo de cada episódio, a fim de realçar a credibilidade da ficção que se segue. Cada episódio é um trecho humano, belo e empolgante.

Em Alemanha Ano Zero, Rossellini (atuando sozinho como roteirista) continua a testemunhar de maneira objetiva e fiel a miséria material e moral de uma época em que a Europa começou do zero (daí o título do filme). Na Berlim arrazada, após a capitulação alemã, uma família se esforça para sobreviver: o pai (Ernst Pittschau) está muito doente, preso ao leito; o irmão mais velho, Karl-Heinz (Franz Krüger), antigo soldado da Wermacht, não sai do prédio semi-destruído, onde encontraram refúgio precário junto com outras famílias, por receio de se apresentar às autoridades de ocupação; sua irmã, Eva (Ingetraud Hintze), frequenta os bares cheios de soldados estrangeiros, com os quais dança para ganhar uns cigarros, mas se recusando a cair na prostituição. É Edmund Koeler (Edmund Moeschke), o filho mais jovem, quase um menino, que sustenta a todos, realizando toda espécie de serviços: cava sepulturas; vende artigos no mercado negro (a balança, para o dono do imóvel onde vivem de favor, Herr Rademaker (Hans Sangen), o disco com o discurso de Hitler, para Herr Enning (Erich Gühne); une-se a um casalzinho de ladrões.…Enning, seu antigo professor, simpatizante nazista e pedófilo ( símbolo, tal como a Ingrid safista de Roma Cidade Aberta do nazismo como corrupção), lhe relembra os princípios de Hitler sobre a eliminação dos fracos e dos inúteis. Como seu pai tem que ser hospitalizado e repete maquinalmente que seria melhor para todos que ele estivesse morto, Edmund, sem medir a importância de seu gesto, o envenena, e depois, abandonado pelo ex-mestre (“Você é louco, um monstro”), caminha no meio dos escombros, e acaba se atirando do quinto andar de um edifício em reconstrução bem em frente do lugar onde mora e no momento em que sai o carro fúnebre levando o corpo de seu progenitor.

Franz Krüger, Ingetraub Hintze e Edmund Moeschke em Alemanha Ano Zero

Cena de Alemanha Ano Zero

Este filme é diferente dos anteriores porque, de uma parte, ele nos mostra as consequências do conflito mundial não mais do lado italiano mas do lado do agressor e, de outra parte, tudo é mostrado pelos olhos de uma criança. É um relato de desespêro sem saída, descrito com uma intensidade e uma autenticidade (embora os personagens falem italiano e não alemão) extraordinárias. Sem desprezar a ficção, e com seu estilo sóbrio, Rossellini acompanha minuciosamente o itinerário do pequeno Edmund, um ser inocente que a distorsão de uma educação eugênica leva a cometer um crime, acreditando ter praticado um ato heróico.

Erich Gönne e Edmund Moeschke em Alemanha Ano Zero

Edmund Moeschke e Ernst Pittschau em Alemanha Ano Zero

Cena de Alemanha Ano Zero

Um comentarista disse com razão que Edmund era um anjo corrompido pelo mal que o cercava. Em determinado momento o pervertido Enning, provedor de garotos para o ex-general com quem ele vive, diz: “Lembre-se, Edmund, seu pai uma vez forjou um certificado para que você não se juntasse à Juventude Hitlerista, mas você logo me contou que o documento era falso, porque você sabia qual era o seu dever (Enning toca na bochecha do menino). E eu deveria ter denunciado ele ao Partido … e a razão pela qual não fiz isso, foi porque gosto de você”.Tudo isto faz de Alemanha Ano Zero uma realização chocante e amarga, que encerra com chave de ouro o trio de filmes de um grande diretor, comprometido em mostrar cruamente os horrores da guerra, e a refletir sobre eles.

 

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