OS NEGROS NO CINEMA AMERICANO CLÁSSICO

janeiro 9, 2020

O uso de brancos em papéis de negros era uma prática comum, tradição transportada do palco (minstrel shows, vaudeville, Broadway) e mantida durante os primeiros tempos do cinema mudo.

Nesta época surgiram os cinco estereótipos raciais mencionados por Donald Bogle no seu esplêndido livro “Toms, Coons, Mulattoes, Mammies and Bucks” (Roundhouse, 1973), tipos característicos utilizados para o mesmo efeito: divertir enfatizando a inferioridade negra. Esses estereótipos já existiam desde os tempos da escravidão e haviam sido popularizados na vida e na arte americanas – os filmes apenas os reproduziram e eles iriam dominar os personagens negros no próximo meio-século.

James B. Lowe

O tom era o Bom Negro. Apesar de ser atormentado, insultado, açoitado, caçado com cães, ele permanecia bondoso e submisso aos seus donos, emergindo como um herói para as platéias brancas. Em 1903, Edwin S. Porter realizou a primeira versão cinematográfica de “Uncle Tom’s Cabin” (A Cabana do Pai Tomás), mas o primeiro tom que chamou atenção foi interpretado pelo ator do teatro, Sam Lucas na quarta versão do romance de Harriet Beecher, dirigida por William Robert Daly em 1914. Como Pai Tomás, Lucas foi o primeiro homem negro a interpretar um papel principal no cinema. Mais tarde, em 1927, outro ator negro, James B. Lowe, seria contratado para estrelar o filme da Universal, A Cabana do Pai Tomás / Uncle Tom’s Cabin, dirigido por Harry Pollard. Posteriormente, tom seria representado na tela por atores como Bill Robinson, Eddie Anderson e Clarence Muse.

Bill “Bojangles” Robinson e Shirley Temple em A Mascote do Regimento

Neto de escravos, Bill “Bojangles” Robinson era um sapateador que, oriundo do vaudeville, se tornou figura muito popular depois de dançar com Shirley Temple descendo uma escadaria em A Mascote do Regimento / The Little Colonel / 1935 e depois, em A Pequena Rebelde / The Littlest Rebel / 1935, ele foi um típico tom como o seu guardião, a primeira vez em que um criado negro ficou responsável por uma vida branca. Fred Astaire considerava-o o maior dançarino de todos os tempos.

Ethel Waters,Kenneth Spencer, Eddie  “Rochester Anderson”, Lena Horne e Rex Ingram em Uma Cabana no Céu

Eddie “Rochester” Anderson veio também do vaudeville e se transferiu primeiramente para o rádio, onde iniciou sua participação como Rochester van Jones, o mordomo de Jack Benny no seu programa na NBC. No cinema, foi visto mais notadamente como Noah em Mais Próximo do Céu / Green Pastures / 1936, como o criado de Bette Davis em Jezebel / Jezebel / 1938, e em um raro papel principal como “Little Joe” Jackson no musical com elenco só de artistas negros, Uma Cabana no Céu / Cabin in the Sky / 1943.

Clarence Muse

Clarence Muse, marcou sua presença primeiramente em Hearts in Dixie / 1929,  interpretando Uncle Napus e depois quando apareceu em Mocidade Feliz / Huckleberry Finn / 1931 como Nigger Jim e em A Vitória Será Tua / Broadway Bill / 1934 como Withey, o amigo de Warner Baxter no seus empreendimentos turfísticos.  Nos meados da década de 30, deixou de lado momentaneamente os toms que representava tão bem e apareceu como Cato, o líder de escravos rebeldes em Noivado na Guerra / So Red the Rose / 1935; porém depois voltou aos toms em Magnólia / Show Boat / 1936 e muitos outros filmes.

O coon era o Negro Bufão. Havia o coon puro e duas variantes deste tipo: o pickaninny e o uncle remus. O coon puro consistia na união de dois estereótipos oriundos dos minstrel shows, o jim crow e o zip coon. O minstrel show (em português, espetáculo de menestréis) era um tipo de espetáculo teatral popular tipicamente americano que reunia quadros cômicos, dança e música, inicialmente com artistas brancos com o rosto maquiado de preto (blackfaces) e o contorno dos lábios e dos olhos pintados com uma tinta branca, que combinava com luvas e meias da mesma cor.

O jim crow nasceu quando, em 1830, um ator branco, Thomas “Daddy” Rice, escureceu o rosto com milho queimado e dançou de maneira saltitante enquanto entoava as letras de  “Jump Jim Crow” (Jim Crow Saltitante), canção muito popular entre os escravos. O zip coon era o dândi negro urbano, escravo libertado que se vestia de modo extravagante, procurando se parecer como um branco afluente, sem se dar conta do ridículo.

Rastus in Zululand

O coon puro era muito comum no cinema mudo em filmes como, por exemplo, Rastus in Zululand / 1910, um dos exemplares da Rastus Series (1910-1911), no qual um negro meio amalucado sonha em ir para a Zululand no coração da África.  Lá ele conquista a afeição da filha do chefe selvagem. Rustus está disposto a flertar com a moça mas, quando intimado a se casar com ela, recusa, preferindo ser cozinhado vivo. O chefe selvagem quase lhe concede este direito, mas tudo não passou de um sonho.

 

Stepin Fetchit e Will Rogers

Sob alguns aspectos, essa série e seu personagem central abriram caminho para o maior coon de todos os tempos, Stepin Fetchit (cujo verdadeiro nome era Lincoln Theodore Monroe Andrew Perry), que deu vida a um dos mais degradantes estereótipos negros: aquele negro preguiçoso e sonolento, que não servia para nada, a não ser comer melancias, roubar galinhas, jogar dados ou – falando lentamente – massacrar o idioma inglês, coçando a cabeça como um macaco.

Fetchit é principalmente lembrado por suas intervenções ao lado de Will Rogers, nos filmes de John Ford Steamboat Round the Bend / 1934 e Judge Priest  / 1935, inéditos comercialmente nos cinemas do Brasil e exibidos apenas no antigo Telecine 5 da Rede Globo com os títulos de Nas Águas do Rio e O Juiz Priest, em um Festival John Ford, nos bons tempos em que Sergio Leemann estava à frente da programação dos cinco canais a cabo da emissora.

Manton Moreland

Os sucessores de Fetchit como coons do cinema foram Mantan Moreland (mais conhecido como o chofer Birmingham Brown, na série Charlie Chan da Monogram) e Willie Best (que o leitor conhece como Chattanooga, o primo de Birmingham Brown em Charlie Chan no México / The Red Dragon / 1946, na mesma série). Mantan ficou célebre pelas suas caretas, seus tropeções quando tentava sair com pressa, seus double takes e nenhum ator conseguiu arregalar os olhos tão bem como ele.

Bob Hope e Wille Best em Castelo Sinistro

Willie chegou em Hollywood no final dos anos 20. Em filmes como O Mistério da Ferradura / Murder on a Honeymoon / 1935 (da divertida série Hildergard Withers com Edna May Oliver e James Gleason) ele era conhecido como Sleep’n’Eat, nome que queria dizer o seguinte: um cara que ficava satisfeito desde que tivesse o bastante para comer e um lugar para dormir. Tal como Stepin Fetchit, Willie era alto e magro e se especializava em personagens facilmente  amendrontados e inarticulados.  Em O Castelo Sinistro / The Ghost Breackers / 1940, ele foi alvo de piadas raciais. Durante um apagão neste filme, Willie treme de medo e de fantasmas, mas é repreendido por seu patrão, Bob Hope, que diz para a heroína, Paulette Goddard: “Ele sempre vê o lado mais negro de tudo.  Nasceu durante um eclipse”. Mais adiante, Hope ameaça Willie: “Você parece um blecaute dentro de um blecaute. Se isto continuar assim, vou mandar pintá-lo de branco”.

Rosetta  e VivianDuncan em Topsy e Eva

O pickaninny era o escurinho ou escurinha de olhos esbugalhados, cabelos arrepiados e cujo comportamento era agradável ou divertido. O termo (que pode ter sido derivado do português pequenino) popularizou-se com referência à Topsy de “A Cabana do Pai Tomás”. Interpretada por Mona Ray na versão cinematográfica de 1927, a personagem fez tanto sucesso, que reapareceu no mesmo ano em Topsy e Eva / Topsy and Eva (Dir: Del Lord) sob os traços de Rosetta Duncan, conquistando mais uma vez o público. Sua irmã Vivian era Eva e o Pai Tomás, Noble Johnson. Thomas Alva Edison foi um pioneiro na exploração dos pickaninnies, quando mostrou Ten Pickaninnies em 1904, precursor da série os Os Peraltas / Our Gang de Hal Roach na qual, nos anos 20 e 30, atores infantis como Matthew “Stymie” Beard, Allen “Farina” Hoskins, Billie “Buckwheat” Thomas, Ernie “Sunshine Sammy” Morrison deram vida a este estereótipo.

Allen “Farina” Hoskins entre Os Perltas.

Vivien Leigh e Butterfly McQueen em … E O Vento levou

Um pickaninny especial foi a Prissy, interpretada por Butterfly McQueen em … E O Vento Levou, que divertiu o público com a sua histeria cômica (por causa da qual levou aquela antológica bofetada de Scarlet O’Hara / Vivien Leigh). Havia ainda o sambo  (The Sambo Series / 1909-1911), popularizado pelo livro “The Story Of Little Black Sambo”, escrito por Helen Bannerman em 1899. Ele era um menino indiano mas, nas ilustrações da obra literária e na tela, parecia um negrinho, talvez gerado a partir da miscigenação entre africanos e nativos da Índia.

James Basquete em A Canção do Sul

O membro final do triunvirato coon é o uncle remus, primo irmão do tom, que se distingue por sua resignação ingênua e inocente. Este personagem se desenvolveu plenamente nos anos 30 e 40 em filmes como A Canção do Sul / Song of the South / 1946. Nele, James Baskette é o velho e querido Tio Remus, um modelo de contentamento e domesticação, que sente prazer em contar histórias maravilhosas ao seu pequeno senhor branco. Em reconhecimento à sua calorosa interpretação, recebeu um Prêmio da Academia Honorário, tornando-se o primeiro ator negro a receber um Oscar. “Tom, Remus, e os pickaninnys”- concluiu Bogle – “foram sempre usados para indicar a satisfação do negro com o sistema e o seu lugar nele”.

O mulatto era uma mulher ou homem negro com sangue branco nas veias, frequentemente retratado na tela como uma figura trágica que, intencionalmente ou não, passam por branco até que descobrem que têm sangue negro ou são descobertos como negros por outro personagem. Segundo Bogle, uma da primeiras aparições do mulatto (ou mulato trágico) ocorreu em The Debt / 1912, curta de dois rolos sobre o Velho Sul. A esposa de um homem branco e sua amante negra lhe dão filhos ao mesmo tempo. Crescendo juntos, o filho branco e a filha mulata se apaixonam e decidem se casar, porém seu parentesco lhes é revelado no momento crucial.  Suas vidas são arruinadas, não somente por serem irmão e irmã, mas também porque a moça tem uma gôta de sangue negro. Bogle aponta ainda três filmes – Humanity’s Cause, In Slavery Days e The Octoroon -, todos realizados por volta de 1913, nos quais vemos a situação de uma mulata tentando passar por branca.

Louise Beavers e Fredi Washinton em Imitação da Vida

No cinema falado temos um exemplo clássico no filme Imitação da Vida / Imitation of Life / 1934, quando Peola (Fredi Washington), a filha da cozinheira negra, se aborrece sempre que tenta se misturar com brancos e seus esforços são frustrados pela aparência de sua mãe preta.  Apesar de ter recebido o aplauso da crítica, Fredi teve dificuldade de arranjar trabalho em Hollywood nos anos 30 e 40. De um lado, ela era demasiadamente bonita e insuficientemente escura para fazer o papel de criadas. Por outro lado, os diretores se preocupavam mais em colocar uma atriz negra com aparência de branca em um papel romântico ao lado de um galã branco e, como o Código de Produção proibia sugestões de miscigenação, eles não ofereciam  papéis românticos para a talentosa Fredi.

O quarto tipo, mammy, era a criada preta, mau humorada e atrevida, porém com implícita aceitação de sua própria inferioridade e devoção aos brancos. Ela cuidava dos filhos dos outros, porém nunca poderia ser um “modelo de maternidade” porque, se fosse casada, o matrimônio não era reconhecido ou sancionado legalmente pela sociedade e, se desse a luz filhos, sua responsabilidade para com as crianças brancas suplantava sua lealdade para com sua própria prole.

Vivien Leigh e Hattie MacDaniell em … O Vento Levou

Parruda, de rosto redondo e sorridente, boca enorme, olhos maravilhosamente expressivos, dentes “da cor das pérolas” e voz estrondosa, Hattie McDaniell aperfeiçoou esse tipo nos anos 30, sendo inesquecível sua participação como a criada de Scarlet O’Hara em … E O Vento Levou / Gone With The Wind / 1939, mas sobressaiu-se também em outros filmes, exprimindo sua teimosia e insolência ou sua preocupação maternal como Queenie em Magnólia / Show Boat / 1955, Malena em A Mulher Que Soube Amar / Alice Adams / 1935, Rosetta em Saratoga / Saratoga / 1937 e  Hilda em Quando Elas  Teimam / The Mad Miss Manton / 1938.

Criticada por seus personagens estereotipados, Hattie respondeu aos críticos ásperamente, tal como responderia a um patrão em um de seus filmes: “ Por que eu iria me queixar de ganhar sete mil dólares por semana interpretando uma criada? Se eu não fizesse isto, estaria ganhando sete dólares semanais sendo uma de verdade!”.

Hattie conquistou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por sua atuação em … E O Vento Levou, o primeiro artista negro a receber tal honraria. Um  Prêmio da Academia Honorário seria concedido a James Baskette em 1948.

Louise Beavers foi outra atriz negra que se incluia na categoria de mammy. Robusta, com uma pele lisa como veludo e olhos grandes e brilhantes, ela era sempre convocada para papéis de cozinheira. Todos se lembram dela como Aunt Delilah, cozinhando e vendendo panquecas com sua patroa Claudette Colbert em Imitação da Vida / Imitation of Live / 1934 embora, por ironia, na realidade, ela detestasse o trabalho de cozinha; de modo que, durante a filmagem, cozinheiras profissionais tiveram que preparar as panquecas. Suas mãos nunca tocaram um prato em toda a sua vida. Outro papel importante de Louise foi em Nascidos para Casar / Made for Each Other / 1939 no qual, como a inocente e devotada criada Lily, ela é um verdadeiro anjo da guarda negro das vítimas da Depressão, Carole Lombard e James Stewart.

Louise Beavers e Claudette Cpbert em Imitação da Vida

Louise Beavers e Mae West em Uma Loura Para Três

Louise integrou também um outro estereótipo, a aunt jemima, que era uma mummy mais bem humorada e menos mandona, versão feminina do uncle tom. As criadas-confidentes dos filmes de Mae West nos anos 30 se enquadram nesta categoria. Louise foi uma aunt jemima em um deles, como a Pearl em Uma Loura para Três / She Done Him Wrong / 1933 e outras duas atrizes negras, Getrude Howard e Libby Taylor apresentaram-se como aunt jemimas respectivamente como Beulah e Jasmine em Santa Não Sou / I’m No Angel / 1933 e Uma Dama do Outro Mundo / Belle of the Nineties / 1934. Ficou célebre aquela cena de Santa Não Sou em que Mae, após ter expulsado de seu apartamento uma dama da alta sociedade que a desprezara, logo se acalma, dando a ordem mais famosa que qualquer criada do cinema recebeu: “Beulah, peel me a grape!”(Beulah, descasque-me uma uva!).

Em contraste com a mummy, podemos apontar o estereótipo jezebel, a mulata promíscua ou “sedutora traiçoeira” que mantinha relações sexuais com seus donos pelos privilégios que esta situação lhe trazia. Encontramos um exemplo perfeito da jezebel no personagem Lydia Brown, a mulata amante do senador abolicionista Stoneman em O Nascimento de Uma Nação / The Birth of a Nation / 1915.

Foi exatamente este filme que introduziu o último estereótipo: o brutal black buck. Neste filme, Griffith usou três variedades de negros. Os primeiros foram as “almas fiéis”, uma mummy e um uncle tom, que permanecem com a família Cameron o tempo todo e a defendem lealmente contra os rebeldes bem como alguns pickaninny, dançando e cantando nas ruas. A segunda variedade foram os brutais black bucks que, tal como o estereótipo coon, pode ser dividido em dois subgrupos, os black brutes e os black bucks, embora as diferenças sejam mínimas. O black brute é um negro bárbaro, boçal. Em O Nascimento de uma Nação os black brutes aparecem proeminentemente na sequência do Congresso no qual os negros têm maioria. Os black bucks puros são os negros violentos e frenéticos no seu desejo sensual de carne branca. Silas Lynch (George Siegmann), o mulato que quer obrigar a branca Elsie Stoneman (Lilian Gish) a se casar com ele, assim como Gus (Walter Long), o renegado negro que tenta estuprar a filha Cameron mais jovem (Mae Marsh) – ambos representados por atores brancos com o rosto pintado de preto -, entram nesta categoria.

George Siegmann (à esquerda) em O Nascimento de uma Nação

Walter Long em O Nascimento de uma Nação

Íntimamente ligada aos bucks e brutes de O Nascimento de uma Nação está a jezebel Lydia, referida linhas atrás. Ela odeia brancos e recusa ser tratada como uma pessoa inferior. Quer poder. Angustia-se o tempo todo com a sua situação desagradável como mulher negra em um mundo branco hostil. Tanto Lydia quanto Mummy foram interpretadas por atrizes brancas com o rosto pintado de preto: pela ordem, Mary Alden e Jennie Lee. Quem fazia o uncle tom também era um ator branco: Harry Braham.

Mary Alden em O Nascimento de uma Nação

Como observou Bogle, sob muitos aspectos, os negros de um clássico como Aleluia    / Hallellujah / 1929 de King Vidor também eram estereótipos, retratados como idealistas sentimentais ou animais altamente emocionais. Rebolando sensualmente na famosa cena do cabaré, a Chick de Nina Mae McKinney representava a mulher negra como um objeto sexual exótico, metade mulher, metade criança, mulher carente sem o contrôle de suas emoções, dividida entre suas lealdades e suas próprias vulnerabilidades. Subentendido neste confronto estava o tema da mulata trágica. Chick era sempre referida como “a garota cor de canela”. Sua metade branca representava o espiritual; a metade negra, o animalesco.

Nina Mae McKinney

Nina Mae McKinney em Aleluia

Nina emergiu como a primeira atriz negra reconhecida da tela. Vidor classificou seu desempenho como “sensacional” e Irving Thalberg proclamou-a como uma das grandes descobertas da época. Mas seu sucesso fenomenal em Aleluia não levou a lugar nenhum. Ela descobriu que não havia papéis principais para atrizes negras. Logo ficou esquecida na América e foi cantar em cabarés e boates pelo mundo afora, anunciando-se como a Garbo Negra. De passagem pela Inglaterra em 1935, apareceu  ao lado de Paul Robeson em Bosambo / Sanders of the River e depois retornou aos Estados Unidos, onde foi vista em alguns filmes independentes só com atores negros. Seu último papel importante foi como Rozelia, a mulher negra agressiva com ciúme de Pinky (Jeanne Crain) – mais uma mulata trágica do cinema -, em O Que a Carne Herda / Pinky / 1949 de Elia Kazan.

Rex Ingram em O Ladrão de Bagdad

Humphrey Bogart e Rex Ingram em Sahara

Dois atores negros escaparam dos estereótipos, interpretando personagens muito dignos e circunspectos: Rex Ingram e Paul Robeson. Ingram interpretou homens que pareciam ser essencialmente livres ou heróis.  O seu Nigger Jim em As Aventuras de Huck / The Adventures of Huckleberry Finn / 1939 nunca foi servil como o de Clarence Muse na versão anterior, Mocidade Feliz / Huckleberry Finn, de 1931. Com sua presença física impressionante e voz estentória, ele parecia tão poderoso (foi Deus em Mais Próximo do Céu / The Green Pastures/ 1936) que o público sabia que não haveria correntes suficientemente fortes para segurá-lo. Em uma cena famosa de O Ladrão de Bagdad / The Thief of Bagdad / 1940, quando Ingram, como um gigantesco gênio da fantasia oriental, finalmente é libertado por Sabu da garrafa onde permanecera encerrado durante séculos, ele grita triunfante: “Livre! Estou livre afinal!” Em Sahara / Sahara / 1943, Ingram é um soldado sudanês Tambul, que se sacrifica para salvar a vida da tripulação do tanque americano sob o comando de sargento Joe Gunn (Humphrey Bogart), atacado pelos alemães nas areias do deserto da Lybia. Em uma cena trepidante, Tambul corre atrás do alemão capturado que vai avisar seus companheiros do blefe armado por Gunn, consegue matá- lo, e depois é fatalmente alvejado.

Paul Robeson em O Imperador Jones

Filho de um escravo que se tornou pregador, Paul Robeson cursou a Rutgers University em New Brunswick, New Jersey, onde era um excelente jogador de futebol americano. Depois de se graduar na Rutgers como primeiro aluno de sua classe, rejeitou uma carreira como atleta profissional e ingressou na Columbia University. Obteve o diploma de Direito em 1923 mas, por falta de oportunidade dos negros na profissão legal, se redirecionou para o palco, unindo-se ao Provincetown Players, grupo teatral de Nova York que incluia o dramaturgo Eugene O’Neill. Sua atuação no papel principal de “ The Emperor Jones” de O’Neill causou sensação em Nova York (1924) e Londres (1925) e ele também estrelou a versão cinematográfica, O Imperador Jones / The Emperor Jones / 1936. Como bem acentuou Bogle, a maior contribuição de Robeson para a história do cinema negro – e o aspecto de sua obra que mais perturbou os espectadores americanos brancos – foi seu retrato orgulhoso, desafiador do homem de cor.

Paul Robeson em Magnólia

Em acréscimo aos seus outros talentos, Robeson possuía uma voz soberba de baixo-barítono e se tornou ainda mais famoso no tablado e depois na tela como Joe em Magnólia / Show Boat / 1936, cantando “Ole Man River”. Neste filme, ele e Hattie McDaniel, como dois criados cômicos, não escaparam dos estereótipos; porém Robeson – é Bogle quem fala –  “nunca se rebaixa totalmente e quando canta ‘Ole Man River’ e ‘Still Sits me ‘(com Hattie), ele levanta o filme com seus ombros maciços e o carrega para momentos de eloquência e grandeza”.

 

Na maioria de seus filmes britânicos (Bosambo / Sanders of the River / 1935, As Minas de Salomão / King Solomon’s Mines / 1937, A Canção da Liberdade / Song of Freedom / 1938 e Tragédia na Mina / The Proud Valley / 1941), Robeson interpretou personagens respeitáveis: em Bosambo, ele é Bosambo, braço direito de confiança de Sanders (Leslie Banks), o homem branco de aço que governa as tribos negras atrasadas da África; em As Minas de Salomão, é Umbopa, o guia (na realidade um grande chefe nativo), que ajuda Allan Quaterman (Sir Cedric Hardwicke) na procura das minas lendárias; em A Canção da Liberdade, é um cantor de concerto de sucesso na Inglaterra, que descobre ser descendente de uma rainha africana, cuja tribo agora está à espera de um líder; em Tragédia na Mina, é o mineiro forte e heróico, que sacrifica sua vida, a fim de que seus irmãos brancos possam viver.

Robeson ao centro em A Tragédia da Mina

Depois do lançamento de O Nascimento de uma Nação em 1915 irrompeu um furor público contra o seu racismo e a percepção de que os negros americanos deveriam produzir seus próprios filmes. Assim surgiu o cinema negro (black cinema) também denominado “cinema de raça” (race cinema) como resposta à ultrajante estereotipagem dos negros americanos no cinema corrente da época.

Oscar Micheaux

Logo no início do século XX, um grupo de realizadores negros independentes – Emmett J. Scott, os irmãos George e Noble Johnson (Lincoln Motion Picture Corporation), Robert Levy (Reol Motion Picture Corporation, que lançou a primeira estrela negra, Edna Morton, anunciada como a “Mary Pickford negra”), e o legendário Oscar Micheaux – formaram companhias produtoras para fazer filmes que realçassem os feitos e as ambições da América negra.

Posteriormente, uma quantidade de outras produtoras (algumas de propriedade de negros, outras controladas por brancos) surgiram em locais tão diversos como Jacksonville, St. Louis, Philadelphia, Chicago e Nova York, quase sempre utilizando os estúdios abandonados da Costa leste ou casas particulares. De acordo com  Thomas Crips (autor de “Slow Fade to Black”, Oxford University, 1977) mais de cem companhias foram fundadas para produzir negro films entre elas a Foster Photoplay, Gate City Film Corporation, Constellation Films, Renaissance Company (que produzia cine jornais e era dirigida pelo ator negro Leigh Whipper), Dunbar Pictures, Roseland Pictures, Paragon Pictures etc. Algumas das companhias mais importantes com financiamento de brancos eram a Astor Pictures (Robert M. Savini), Herald Pictures Incorporated (Jack e Dave Goldberg), Hollywood Pictures (Richard C. Kahn, produtor dos black westerns) e Million Dollar Pictures, que será abordada mais adiante.

Bill Picktett

Seus filmes passavam em qualquer lugar onde pudesse atingir uma platéia negra: cinemas segregados no Sul, salas situadas nos guetos das grandes cidades do Norte e, ocasionalmente, em igrejas, escolas ou reuniões sociais de negros. Alguns desses filmes trouxeram novos estereótipos: por exemplo, homens negros de ação praticando atos de heroismo e de honra como ocorria com o caubói vivido por Bill Pickett em filmes como The Bull Dogger / 1923; porém outros eram manifestos sobre a natureza dos negros na América ou sobre a dinâmica racial – divisões e tensões dentro da própria comunidade (v. g. Scar of Shame / 1929, melodrama lento e melancólico que contava a história de um casamento malogrado entre um jovem pianista negro e uma mulher negra da classe baixa).

De todos os primeiros realizadores negros o mais importante (e um dos poucos que trabalharam tanto no cinema silencioso como no sonoro) foi o infatigável produtor/ diretor Oscar Micheaux. Seus filmes refletiam as aspirações da burguesia negra e raramente abordavam a miséria racial: ele criou um mundo ideal onde os negros eram tão afluentes e educados quanto os brancos, e por isto foi muito criticado. Micheaux escolhia seus elencos com base no tipo. Ele moldava seus astros conforme as personalidades brancas de Hollywood e os promovia como versões negras. O bonitão e elegante Lorenzo Tucker foi primeiramente apresentado como o “Valentino negro” e posteriormente, quando veio o cinema falado, ele era o “William Powell de cor”; a sensual e insolente Bee Freeman era a “Mae West marrom”; “Slick” Chester, ator que interpretava papéis de gângster, tornou-se o “Cagney de cor”; a graciosa Ethel Moses foi anunciada como a “Harlow negra”.

Lorenzo Tucker

A principal representante do cinema negro dos anos 30 em diante foi a firma Million Dollar (fundada em 1936 pelo chefe de orquestra e mestre-de-cerimônias Ralph Cooper juntamente com os brancos Harry e Leo Popkin), que tirou a realização de filmes de raça da marginalidade, aumentando sua reputação e capacidade de atrair o público. Tal como a firma de Cooper, muitas das outras companhias  (e certamente as mais prolíficas) não eram brancas nem negras, realizando black westerns, filmes de gângster e de mistério, comédias românticas, musicais, aventura, horror etc.

Os black westerns (v. g. Bronze Buckaroo / 1938, Harlem Rides the Range / 1939 com o cantor-cowboy negro Herbert Jeffries) transcorriam em um Oeste totalmente negro; não havia brancos nele, nem mesmo como vilões! Não obstante, os intervalos cômicos usavam invariavelmente a espécie de tipos e situações (o cômico companheiro do mocinho assustado por fantasmas, o cozinheiro ladrão de galinhas, os trabalhadores braçais preguiçosos), que os negros compreensivelmente rejeitavam nos filmes corriqueiros de Hollywood.

Lena Horne e Bill” Bojangles “Robinson em Tempestade de Ritmo

Nos meados dos anos 30, quando a era do suíngue atingiu o auge, os negros foram   mais do que nunca empregados como musical entertainers nos filmes de Hollywood,  destacando-se Duke Ellington, Cab Calloway, Louis Armstrong, Lena Horne e Hazel Scott e, no início dos anos 40, surgiram dois filmes musicais só com atores negros: Uma Cabana no Céu / Cabin in the Sky / 1943 (com Ethel Waters como a boa esposa Petunia e Lena Horne como a tentadora Georgia Brown, e mais: Eddie Anderson, Louis Armstrong, Rex Ingram, Butterfly McQueen, Duke Ellington, Hal Johnson Choir, Manton Moreland, Willie Best, Ethel Waters, Oscar Polk,  Ruby Dandridge (mãe de Dorothy), Kenneth Spencer) e Tempestade de Ritmo / Stormy Weather / 1943 (com Bill  Robinson, Lena Horne, Fats Waller, Ada Brown, Nicolas Brothers, os dançarinos da trupe de Katherine Dunham, Cab Calloway, Dooley Wilson, o Sam do piano de Casablanca / Casablanca / 1942).

Humphrey Bogart e Doley Wilson em Casablanca

Entretanto, quando os grandes estúdios empregavam um artista negro nos seus musicais, eles apareciam em um “interlúdio”, no momento em que os atores brancos iam a alguma boate ou a alguma festa para se divertirem. Assim, em Rapsódia Azul / Rhapsody in Blue / 1945, Hazel Scott surgia repentinamente em um requintado restaurante europeu cantando “The Man I Love” de George Gershwin em francês e inglês. Ali estava uma cantora negra sofisticada bem à vontade em um ambiente estrangeiro grã-fino, mas nós sentíamos o seu isolamento, completamente alienada de todo o resto do filme.

Porém isolamento e alienação eram as últimas coisas que alguém via nos antigos filmes de raça. Em Caldona / 1945, Beware / 1946 e Reet, Petite and Gone / 1947, o grande músico de jazz e rhythm-and-blues, Louis Jordan, não somente tinha a oportunidade de improvisar no seu saxophone ou no seu clarinete acompanhado pelo grupo The Tympany Five, como também de ser um astro. À medida em que Jordan passava das cenas românticas da intriga para os números musicais e depois voltava para a intriga, os filmes mostravam um retrato de um intérprete negro, que era também uma pessoa que tinha uma vida fora do palco, com conexões culturais  e raízes às quais ele sempre poderia retornar.

Clarence Brooks (ao fundo) em Médico e Amante

Clinton Rosemund em Esquecer, Nunca

Ernie Anderson em Nascida Para o Mal

Leigh Whipper em Consciências Mortas

Canada Lee (à extrema direita) em Um Barco e Nove Destinos

Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo americano sentiu que seu programa para aumentar o emprego de cidadãos negros em setores da indústria antes restritos, seria auxiliado por uma distribuição geral de filmes, nos quais os negros desempenhassem um papel importante. Personagens negros simpáticos haviam aparecido nos filmes americanos nos anos 30 (v. g. o Dr. Oliver Marchand  (Clarence Brooks) que ajudava Ronald Colman a combater a praga nas Antilhas em Médico e Amante / Arrowsmith / 1931; o zelador negro Tump Redwine (Clinton Rosemund) que descobre o corpo de uma jovem branca assassinada e é obrigado a enfrentar um interrogatório brutal na polícia racista da pequena cidade em Esquecer, Nunca / They Won’t Forget / 1937). Nos anos 40, distinguiram-se entre outros, o jovem negro Parry Clay (Ernie Anderson) preso e acusado de atropelamento, que mantém sua dignidade apesar de ser persistentemente atormentado até que a verdadeira culpada – Bette Davis -admite sua culpa em Nascida para o Mal / In This Our Life / 1942; o pregador negro Sparks (Leigh Whipper) que se rebela contra a turba furiosa pedindo em vão misericórdia para os três homens acusados injustamente de um crime e prestes a serem enforcados em Consciências Mortas / The Ox-Bow Incident / 1943; Joe Spencer, o garçom de navio negro, um dos náufragos em Um Barco e Nove  Destinos / Lifeboat / 1944; ele a princípio é chamado de “Carvão” (por Tallulah Bankhead), mas quando se revela que salvou a vida de uma mulher branca e uma criança que estavam se afogando, torna-se  “Joe” e assume uma dimensão heróica. O papel de Joe foi interpretado com muita dignidade e inteligência por Canada Lee, ator da Broadway previamente aclamado por seu trabalho na produção de Orson Welles, “Native Son”. Canada Lee faria depois outras aparições como negro simpático em Corpo e Alma / Body and Soul / 1947, Fronteiras Perdidas / Lost Boundaries / 1949 e principalmente como o Reverendo Stephen Kumalo em Os Deserdados / Cry the Beloved Country / 1952.

James Edwards, Lloyd Bridges e  Franck Lovejoy em Clamor Humano

Ethel Waters e Jeanne Crain em O Que a Carne Herda

Juano Hernandez e  David Brian  em O Mundo Não Perdoa

Em 1949, o cinema negro ficou à beira da morte quando Hollywood lançou uma série de filmes sobre problemas sociais  – Clamor Humano / Home of the Brave, O Que a Carne Herda / Pinky, O Mundo Não Perdoa / Intruder in the Dust -, que davam uma nova visão do negro e do seu papel na vida americana – pois os antigos filmes de raça jamais poderiam competir com os filmes muito mais bem-feitos nos grandes estúdios. Além disso, após a Segunda Guerra Mundial, a América negra, consciente de que os pracinhas negros lutaram pela liberdade dos brancos apenas para encontrar, no seu retorno à patria, a mesma escravidão econômica, passou a ter uma visão diferente de si própria e ansiou por uma nova espécie de filmes.

Sidney Poitier e Richard Widmark em O Ódio é Cego

John Cassavetes e Sidney Poitier em Um Homem Tem Três Metros de Altura

Sidney Poitier e Tony Curtis em Acorrentados

Nos anos 50, durante a ascensão do movimento dos direitos civis, as platéias negras preferiram ver Sidney Poitier em O Ódio é Cego / No Way Out / 1950, Um Homem Tem Três Metros de Altura / Edge of the City / 1957 e Acorrentados / The Defiant Ones / 1958 que promoviam os então aceitáveis temas de integração racial e assimilação cultural. Apesar de várias concessões, tais filmes também tocavam nos conflitos entre brancos e negros, algo que os filmes de raça do período clássico raramente fizeram e, por isso, desapareceram.

Dorothy Dandridge

Para os atores negros, a década de cinquenta foi muito importante, surgindo outras grandes personalidades negras como Ethel Waters e Dorothy Dandridge. Como disse muito bem Bogle, contemplar a humanidade de Waters ou a beleza de Dandridge ou o código de decência de Poitier, valia o preço do ingresso e os três abriram um pequeno espaço no lugar que Hollywood tradicionalmente mais apreciava: a bilheteria.

5 Responses to “OS NEGROS NO CINEMA AMERICANO CLÁSSICO”

  1. Este artigo é uma preciosidade. Informações muito relevantes, inéditas em língua portuguesa, me parece. D´vontade de ver cada filme citado. Falando sobre os grandes Nicolas Brothers, de Stormy Weather, o número deles na escada é apenas impressionante. Reza a lenda que o próprio Fred Astaire o considerava a cena a melhor coreografia em cinema de todos os tempos,

  2. Obrigado Daniel. Na verdade devo muito ao precioso livro de Donald Bogle que recomendo a todos que se interessam pelo assunto.

  3. Parabéns pela excelente pesquisa. Como disse Daniel acima, muita vontade de rever os que já vi e muitos dos que não vi. Este é um tema de pesquisa up to date e dou – lhe forças para ir adiante comentando agora não só o racismo e o terror negros como os excelentes filmes de lugar de fala do terrorismo branco estadunidense do qual Hollywood vai se liberando com aplausos mundiais.

  4. Obrigado Nelida. Devo muito a Donald Bogle, professor da Universidade da Pennsylvania, que formulou os cinco estereótipos raciais explorados pelo cinema americano clássico.Eles me serviram de guia para a elaboração deste post. Volte sempre porque seus comentários enriquecem meu blog.

  5. Obrigada pela resposta. Acho que você enriquece os amigos com este trabalho sobre esta arte que conduz polêmicas há cem anos pelo menos. Bravo,

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