Após se formar no Lycée Louis-le-Grand em Paris, Jean Delannoy (Noisy-le-Sec, 1908 – Guainville, 2008) inscreveu-se na Sorbonne para seguir o curso de letras, porém o cinema o atraiu. Apoiado pela irmã Henriette, que era atriz, ele fez pequenos papéis em dois filmes mudos. Interessando-se pela técnica, Delannoy começou a trabalhar no estúdio da Paramount em Saint-Maurice, onde montou cerca de 75 filmes, passando depois a assistente de direção de Jacques Deval e Felix Gandera. Em 1932, realizou seu primeiro filme curto, Franches Lippées. No ano seguinte, estreou no longa-metragem com Paris-Deauville, mas somente em 1942 com Pontcarral, Colonel d’empire começou a chamar a atenção como diretor no meio cnematográfico.
Delannoy adquiriu fama como profissional competente e meticuloso, porém sem personalidade. Seu academicismo e sua dependência de bons textos literários, diálogos de eficientes roteiristas e astros famosos fizeram com que críticos da Nouvelle Vague o colocassem como um dos principais alvos – juntamente com Claude Autant-Lara – no seu combate à “tradição de qualidade”. Por mais corretas que possam ser essas observações, o fato é que os melhores filmes do cineasta, como Além da Vida / L’Eternel Retour / 1943 e outros que realizou posteriormente resistiram mais ao tempo do que muitos filmes feitos pelos seus detratores.
No meu livro Uma Tradição de Qualidade O Cinema Clássico Francês 1930-1959, (ed. PUC-Contraponto, 2010), selecionei estes cinco filmes relevantes do diretor.
ALÉM DA VIDA / L’ÉTERNEL RETOUR / 1943
Patrice (Jean Marais) mora na Bretanha no castelo de seu tio Marc (Jean Murat), que é viúvo. Gertrude Frossin (Yvonne de Bray), cunhada de Marc, seu marido Amédée (Jean d’Yd) e o filho deles, o anão Achille (Pierre PIéral), vivem no castelo. Os Frossin detestam Patrice. Patrice decide procurar uma nova esposa para o tio. Em uma ilha de pescadores ele salva a loura Nathalie (Madeleine Sologne) das garras de um bruto. Nathalie aceita casar-se com Marc. Mas Anne (Jane Marken), a velha ama de Nathalie, lhe dá um filtro de amor. Patrice e Nathalie bebem o conteúdo do frasco e descobrem sua paixão…
Transposição céltica de Tristão e Isolda para o século XX, transformando Jean Marais e Madeleine Sologne em “heróis românticos” da juventude da época. A idéia do amor mais forte que as forças do mal já havia sido utilizado por Jacques Prévert e Marcel Carné em Os Visitantes da Noite / Les Visiteurs du Soir / 1942, mas isso não tira o mérito da realização de Cocteau (autor do roteiro e diálogos) -Delannoy, que ficou célebre pela utilização poética dos exteriores, os grandes cenários (direção de arte de Georges Wakhevitch), a beleza plástica das Imagens (foto de Roger Hubert) e os diálogos refinados. Delannnoy foi criticado pela aparência glacial que deu ao universo de Cocteau, porém os artifícios do poeta pediam essa encenação, que lhe serviu muito bem.
SINFONIA PASTORAL / LA SYMPHONIE PASTORALE / 1946
O pastor Jean Martin (Pierre Blanchar) recolhe, em uma cabana isolada no meio da neve, uma menina órfã cega e meio selvagem. Apesar da oposição de sua esposa Amélie (Line Noro), ele decide educá-la com seus filhos. Gertrude (MIchèle Morgan) torna-se uma bela jovem. O filho mais velho do pastor, Jacques, tem uma amiga de infância Piette Castéran (Andrée Clément), que o ama, mas ele se interessa por Gertrude. Seu pai, confusamente ciumento, lhe faz entender que não pode se casar com uma cega. Gertrude é operada e recobra a visão. Incapaz de aceitar o amor de Jacques e desapontada com a afeição que Martin lhe devota, Gertrude foge. O pastor sai à sua procura e a encontra morta.
Na obra de Gide – com um sugestivo título beethoviano -, o pastor vai reler o Evangelho, para confirmar sua intuitiva convicção de que um sentimento tão natural e puro como o amor que sente por Getrude não pode ser um pecado. Porém, no filme o conflito religioso foi atenuado, acentuando-se as reações psicológicas dos personagens. A direção de Delannoy é sóbria e límpida, ensejando bons momentos de cinema, como a entrada de Gertrude na igreja já com a visão recuperada e a corrida do pastor até encontrar o grupo carregando o corpo de Gertrude. Em um gesto autoritário, Martin afasta os circunstantes gritando: “Vão embora! Ela é minha! Logo depois, a câmera mostra o rosto inerte de Gertrude com os olhos abertos e a mão do pastor que desce para fechá-los.
DEUS NECESSITA DE HOMENS / DIEU A BESOIN DES HOMMES / 1950
Em1859, o vigário da ilha de Sein, na Bretanha, desencorajado pela atitude de seus paroquianos, que roubam os destroços dos navios naufragados, retorna ao continente. No domingo seguinte, os habitantes da ilha “elegem” como padre o sacristão Thomas Gourvennec (Pierre Fresnay). Este, crente a atraído pelo cerimonial religioso, tenta suprir a ausência do vigário. Para cumprir sua missão, ele chega até a romper seu noivado com Scholastique (Andrée Clement). Thomas solicita em vão a ajuda do prior de Lescoff (Jean Brochard). Um pescador, Joseph Le Berre (Daniel Gélin), mata sua mãe por piedade. Thomas o absolve, mas o prior, que finalmente chegara, não permite que ele seja enterrado no solo da igreja.
Drama religioso colocando o problema da necessidade que uma população primitiva e sem padre tem de receber todos os sacramentos. Em princípio, um eloquente testemunho dado à indestrutibilidade da fé mesmo entre as almas ainda grosseiras e submetidas a instintos elementares. Porém o espetáculo começa pela visão de um padre que abandona seu posto justamente quando seus paroquianos mais precisam dele, e termina pela recusa da Igreja em reconhecer a vocação sincera consagrada pelos fiéis. Sem falar na atitude do prior que, jogando no chão as hóstias preparadas com tanta devoção pelas mulheres da ilha, age como um agente brutal da ordem hierárquica.
AMAR-TE É MEU DESTINO / LA MINUTE DE VERITÉ / 1952
Casado com Madeleine (Michèle Morgan), uma atriz de teatro, o doutor Pierre Richard (Jean Gabin) é chamado para atender um jovem pintor, Daniel Prévost (Daniel Gélin), que tentou o suicídio ligando o gás. Prestando-lhe os primeiros socorros, o médico descobre, ao lado da cama do rapaz, uma foto do moribundo em companhia de Madeleine, abraçados ternamente. Naquela mesma noite, Pierre pede explicações à sua esposa e o casal faz um balanço de sua vida sentimental.
Estudo psicológico sobre o ponto culminante de uma crise conjugal. O filme é uma inquirição e um depoimento, durante os quais a ação passa do presente para o passado em um vaivém constante, habilmente forjado pela decupagem e pela montagem. Os diálogos são humanos, sóbrios, comoventes, salientando-se os contra-ataques irônicos ou amargos do marido depois de ouvir em silêncio, angustiado, as revelações de sua mulher. MIchèle Morgan e Jean Gabin expõem o drama íntimo do casal da alta burguesia de maneira um tanto contida, sem o ardor que talvez pudesse impressionar mais o público.
ASSASSINO DE MULHERES / MAIGRET TEND UM PIÈGE / 1958
Perto da Place des Vosges, uma mulher é encontrada morta com as roupas rasgadas. Outras três mulheres são apunhaladas. O comissário Maigret (Jean Gabin) arma uma cilada para tentar descobrir o assassino. No curso da reconstituição do crime, o inspetor Lagrume (Olivier Hussenot) repara o estranho comportamento de Marcel Martin (Jean Desailly), que conhece bem a praça, onde sua mãe possui um imóvel. Maigret fica convencido da culpabilidade de Marcel, decorador fracassado e impotente sexual. Mas enquanto Marcel está deitdo na delegacia, um novo crime é cometido. A esposa de Marcel, Yvonne (Annie Girardot), é a chave do mistério.
Dessa vez o comissário Maigret (personagem de ficção de novelas policias criadas pelo escritor belga Georges Simenon) está às voltas com um caso de mortes de mulheres repetidas a intervalos regulares e visivelmente cometidas por um mesmo criminoso. No desenrolar da investigação surgem tipos duvidosos e, como de costume, um deles é o verdadeiro assassino. Jean Delannoy dirige esta aventura policial solidamente construída, sem esquecer a dimensão humana, as relações psicológicas entre os personagens, sempre presentes na obra de Simenon. Gabin se parece muito consigo mesmo, para assumir a identidade de outro, mas em todos os seus filmes, ele dá um jeito de entrar na pele do personagem que interpreta.