MICHEL SIMON

novembro 14, 2011

Em mais de cinquenta anos de vida no mundo do espetáculo, Michel Simon conseguiu construir uma carreira rica e abundante tanto no cinema como no teatro.

Filho de Joseph Simon e de Véronique Burnat, François-Michel nasceu em Genebra, Suiça, no dia 9 de abril de 1895.  Seu pai era salsicheiro e numismata de coração, especializado em moedas antigas, gregas ou romanas.

Em 1912, Simon afastou-se dos estudos e de sua família e foi para Paris, onde exerceu várias profissões (palhaço acrobata contracenando com um par de dançarinos ou com um prestidigitador, professor de boxe, fotógrafo) mas o encontro com Georges Pitoeff decidiu seu futuro como ator.

Fazendo pequenos papéis na trupe de Pitoeff em peças de  Shakespeare, Theckov e Bernard Shaw, Simon chamou a atenção dos críticos, que reconheceram seu enorme talento, principalmente quando ele interpretou o diretor de teatro em “Seis personagens à procura de um autor de Pirandello.

No começo de 1922 a trupe de Pitoeff transferiu-se para a Comédie des Champs Élysées porém, um ano depois, Simon deixou-a, para atuar em vaudevilles de Tristan Bernard, de Yves Mirande e de Marcel Achard,  e também em comédias musicais escritas por Albert Willlemetz.

Em seguida, ele foi contratado por Louis Jouvet, que havia substituído Pitoeff na Comédie des Champs Élysées, e foi com Jouvet, numa peça de Marcel Achard, Jean de la Lune, que Simon se impôs de uma vez por todas de maneira brilhante. Seu talento inimitável transformou o papel secundário de Cloclo na principal atração do espetáculo.

A trajetória teatral de Michel Simon prosseguiria de sucesso em sucesso mas foi o cinema que lhe trouxe uma imensa popularidade. Ele estreou na tela em 1925, primeiramente ao lado de Ivan Mosjoukine em Feu Mathias Pascal de Marcel L’Herbier, baseado em Pirandello e, quase ao mesmo tempo, em um filme realizado na Suiça, La Puissance du Travail ou La Vocation D’André Carrell realizado por Jean Choux.

Após ter participado de mais alguns filmes (vg. La Passion de Jeanne d’Arc / 1928 de Carl Dreyer), sua carreira cinematográfica se iniciou verdadeiramente com a versão para a tela de Jean de Lune / 1931, na qual ele contracenou com Madeleine Renaud e René Lefevre. Segundo seu depoimento, Simon teria participado ativamente da direção do filme, que foi porém assinada por Jean Choux.

Jean Renoir dirigiu-o nas suas obras de encomenda, Tire au Flanc / 1928 e On Purge Bébé / 1931 e uma relação se estabeleceu entre o cineasta e o intérprete, os quais resolveram associar-se a projetos mais pessoais, mais ambiciosos como A Cadela / La Chienne / 1931, sucedendo-se uma outra realização muito importante, Boudu Sauvé des Eaux / 1932.

Excetuando um casamento de alguns meses com Yvonne Prieur (que lhe deu um filho, François), Simon era um misantropo, que vivia à margem da sociedade no meio de seus animais (quatro macacos, uma cadela, cinco gatos, e um papagaio) e da natureza na sua vila de Noisy-le-Grand. Ele detestava seu físico grosseiro e, como não podia fazer o galã, era frequentemente escalado para interpretar personagens mais velhos. Simon demonstrava sempre uma versatilidade virtuosística retratando figuras brincalhonas ou grotescas em acréscimo aos seus muitos papéis trágicos.

Durante a Ocupação, Simon foi denunciado à Gestapo como judeu e acusado de comunista. Quando veio a Libertação, ele foi apontado como colaboracionista e convocado, como tantos outros, diante de um Comitê de Purificação. Simon escapou ileso de todas as acusações. Após sua morte, um jornal político, l’Evénement du Jeudi, revelou que ele teria sido agente da N.K.V.D. mas não surgiu uma prova sólida a respeito

A proeminência de Simon  nos filmes franceses foi ameaçada no final dos anos 50 em virtude de uma alergia, provocada por uma tintura que usou numa maquilagem, a qual atacou seu sistema nervoso, paralisando parte de seu corpo e de sua face. Porém ele se recuperou e teve um retorno triunfante como astro com uma magnífica performance em Le Viel Homme et l’Enfant / 1967 (Dir: Claude Berri) como um camponês anti-semita, cuja natureza humanista é revelada através do relacionamento com um menino judeu durante a guerra.

Ao longo de sua extensa carreira, Michel Simon fez 100 longas-metragens, entre os quais estão algumas obras-primas do cinema francês. Destas 100 produções, ví apenas 25 e, para este artigo, relacionei as minhas 15 interpretações favoritas do ator: A Cadela / La Chienne / 1931, Boudu Salvo das Águas / Boudu Sauvé des Eaux / 1932, Atalante / L’Atalante / 1934, Família Exótica / Drôle de Drame / 1937, O Mistério do Colégio / Les Disparus de Saint-Agil /1938, Caís das Sombras / Quai des Brumes / 1938, Paixão Criminosa / Le Dernier Tournant / 1939, La Fin du Jour / 1939, Fric Frac / 1939, O Demônio de Paris / Vautrin / 1943, Pânico / Panique / 1946, Trágica Inocência / Non Coupable / 1947, Entre a Mulher e o Diabo / La Beauté du Diable / 1949, La Poison / 1951, La Vie d’un Honnête Homme / 1952.

A CADELA (Dir: Jean Renoir): Maurice Legrand (Michel Simon) é um homem  respeitável  que, sem poder se livrar de Adèle (Magdeleine  Bérubet), sua esposa rabugenta, e da função monótona de caixa de um estabelecimento comercial, dedica-se à pintura nos fins de semana. Uma noite, Legrand conhece a prostituta Lulu (Janie Marèze), que é explorada pelo rufião Dédé (Georges Flamant). Para sustentá-la em um pequeno apartamento, Legrand dá um desfalque na firma. Dédé convence Lulu a vender os quadros de Legrand, assinando-os como se fossem de uma artista americana. Legrand surpreende Lulu mas é Dédé que será acusado da morte e executado.

Legrand pequeno burguês tímido é capaz das mesmas vilanias que o rufião Dédé. Ele não sente o menor remorso por ter cometido o crime e até assiste, com uma alegria selvagem, a execução de seu rival. Simon traduz perfeitamente os tormentos de seu personagem, expressando uma violência muda. Obedecendo a Renoir, que lhe pediu para não elevar a voz nas situações extremas, ele pronuncia no mesmo tom as réplicas mais terríveis: ”Você não é uma mulher. Você é uma cadela”. Fora da tela, Simon estava apaixonado pela atriz porém foi Flamant quem a conquistou. Terminada a filmagem, Flamant ofereceu a Janie uma viagem e eles partiram num carro esporte, que haviam comprado para a ocasião. O acidente, que aconteceu na estrada de Sainte-Maxime, matou a atriz mas poupou o condutor. “Michel Simon sofreu o golpe tão dolorosamente – contou Renoir –   que ele desmaiou no enterro”. Segundo consta, Charles Chaplin possuía uma cópia de A Cadela, que projetava para seus amigos dizendo-lhes: “Vou lhes mostrar o maior ator do mundo”.

BOUDU SALVO DAS ÁGUAS (Dir: Jean Renoir): Boudu (Michel Simon), simpático mendigo parisiense, tenta se suicidar mas é salvo por Lestingois (Charles Granval), que tem como amante a própria empregada, Anne-Marie (Séverine Lerczinska). Sentindo-se responsável por Boudu, Lestingois leva-o para sua casa. Em pouco tempo, Boudu corteja Anne-Marie e conquista Mme. Lestingois (Marcelle Hainia) até que os dois casais, Boudu – Mme. Lestingois e Lestingois – Anne Marie descobrem reciprocamente o duplo adultério. Para salvaguardar as aparências burguesas, Lestingois resolve casar Boudu com Anne-Marie. Porém Boudu prefere a liberdade.

Boudu nunca diz obrigado, comporta-se mal à mesa, resmunga quando não consegue o que quer, saqueia a cozinha, cospe nos livros (logo no livro mais querido de Lestingois, A Fisiologia do Casamento, de Balzac), bolina Anne – Marie, acalma “os nervos” de Mme. Lestingois. Fauno anarquista e amoral, ele só segue o seu instinto e se choca com a sociedade burguesa, cujas regras é incapaz de respeitar. Boudu é o selvagem que reage contra a hipocrisia social, as regras e os costumes. Era preciso um ator como Michel Simon para fazer sentir a desordem que Boudu introduz no lar de Lestingois. “Simon é extraordinário”, disse Renoir durante as filmagens, “e não se pode imaginar um selvagem mais natural”.

ATALANTE (Dir: Jean Vigo): Jean (Jean Dasté), proprietário da barca Atalante, casa-se com Juliette (Dita Parlo) e a leva para bordo, onde a moça aprende a viver na companhia do marido, do Père Jules (Michel Simon), velho lobo do mar pitoresco e resmungão, e de um jovem grumete. A única distração para Juliette é o Père Jules, com seu gato nos ombros e seu acordeão, e ela aguarda com impaciência a chegada a Paris. Quando a Atalante atraca no porto, Jean leva Juliette a um baile. Um camelô (Gilles Margaritis) flerta com Juliette e Jean, enciumado, põe fim à escala. O camelô vem procurar Juliette na barca mas ela Ju parte, e Père Jules a traz de volta.

Com a inserção de uns detalhes curiosos sobre os personagens e de lampejos surrealistas, Vigo transformou uma intriga banal e melodramática em um poema de amor. A encarnação do Père Jules por Michel Simon representa a grande atração do filme. Coberto de tatuagens, fumando com seu umbigo, vestido de mulher para fazer a dança do ventre, capaz de fazer nascer a música com um gesto (seu dedo substitui a agulha do fonógrafo), dono de um museu secreto de objetos estranhos, o ator demonstrou o seu imenso talento.

FAMÍLIA EXÓTICA (Dir: Marcel Carné): O pastor Archibald Soper (Louis Jouvet) denuncia como perniciosos os romances policiais de Felix Chapel (Michel Simon). Depois, vai jantar na casa de seu primo, o botânico Irwin Molyneux, que não é outro senão o misterioso Chapel. A esposa de Irwin, Margaret (Françoise Rosay) havia despedido sua empregada e se esconde na cozinha para preparar a refeição. Intrigado com a ausência de Margaret e com as respostas embaraçosas de Irwin, o pastor pensa que o primo matou a mulher e aciona a Scotland Yard.

Extraída de um romance humorístico inglês, a intriga põe em cena personagens extravagantes: um apreciador de mimosas que escreve em segredo romances policiais (Michel Simon), um assassino (Jean-Louis Barrault) que ama os carneiros e mata os açougueiros porque eles matam os carneiros, um leiteiro (Jean – Pierre Aumont) de imaginação fértil que inventa histórias horríveis, um pastor libidinoso (Louis Jouvet) que perde uma foto erótica com a dedicatória de sua amante, etc. Michel Simon eleva a arte da composição ridícula ao seu nível mais alto. Por um incômodo na garganta ou uma gagueira súbita, Simon valoriza a menor sílaba de seu texto de uma maneira provavelmente insuperável,  prestando um valioso serviço a um espetáculo burlesco delirante, para o qual contribuem também o elenco de intérpretes de prestígio.

O MISTÉRIO DO COLÉGIO (Dir: Christian-Jaque): No colégio Saint-Agil, três alunos, Beaume (Serge Grave), Sorgue (Jean Claudio) e Macroy (Marcel Mouloudji), constituíram uma sociedade secreta com a finalidade de partir para os Estados Unidos e fazer fortuna. Uma noite, Sorgue vê um homem sair de uma parede e depois sumir precipitadamente. No dia seguinte,  Sorgue desaparece. O professor Lemel (Michel Simon) acusa seu colega estrangeiro Walter (Erich von Stroheim) de ser o responsável pelo desaparecimento. Depois, Macroy e Beaume também somem. O mistério tem a ver com uma quadrilha de falsários, chefiada por M. Boisse (Aimé Clariond), o diretor do estabelecimento.

Nos corredores sombrios, nas salas de aula noturnas e ameaçadoras, nos dormitórios gelados de Saint-Agil, confrontam-se dois mundos: o mundo  da infância, encantador e misterioso, e o mundo dos adultos, habitado por seres  nocivos. São professores que se caluniam entre si, manifestam sua xenofobia e, enfim, o chefe do bando de malfeitores é o próprio diretor da instituição. O filme propicia um duelo de interpretação entre dois monstros sagrados do cinema: Erich von Stroheim e Michel Simon. Stroheim está magnífico como o professor de inglês que serve de bode expiatório de seus colegas para os quais representa o “boche” e Michel Simon como o professor de desenho alcoólatra.

CAIS DAS SOMBRAS (Dir: Marcel Carné): Jean (Jean Gabin), um desertor, chega ao Havre e procura um abrigo. Trazido por um mendigo, Quart-Vittel (Aimos), ele é hospedado na taverna do velho Panama (Edouard Delmont), onde conhece um pintor alucinado, Michel Krauss (Robert Le Vigan) e uma bela jovem triste, Nelly (Michèle Morgan). Esta é assediada por seu tutor, Zabel (Michel Simon), um traficante, que vem sendo espreitado por um bando de malandros, cujo chefe é Lucien (Pierre Brasseur). Uma manhã, quando Lucien importunava Nelly, Jean o esbofeteia. Michel se suicida, deixando para Jean suas roupas e seu passaporte e o desertor decide embarcar para a Venezuela. Jean encontra Zabel, querendo abusar de Nelly,  e o mata. Ao se dirigir para o porto, é abatido a tiros por Lucien enquanto o navio parte.

A beleza do filme reside primeiramente na sua atmosfera, as docas inundadas de brumas e as ruas de calçadas reluzentes, onde os personagens passeiam ao ritmo de uma música extraída de uma velha canção dos marinheiros. Obra-prima plástica, uma das mais representativas do realismo poético, o filme apoia-se também nos atores, perfeitamente encaixados em um pessimismo lírico, que muitos viram como um eco de certo fatalismo que sucedeu ao fracasso da Frente Popular. Simon nos oferece mais uma interpretação magistral como o repugnante receptador e assassino, apaixonado por música religiosa (na cena em que ele é morto por Jean o fundo musical é cantado pelos Petits Chanteurs à la Croix-de-bois!).

PAIXÃO CRIMINOSA (Dir: Pierre Chenal): Frank (Fernand Gravey) torna-se empregado de Nick Marino (Michel Simon), proprietário de um posto de gasolina nas montanhas da Provença. Nick é casado com Cora (Corinne Luchaire), mulher  bem mais jovem do que ele. Cora seduz Frank e os dois decidem se desembaraçar de Nino, fazendo crer que ele foi vítima de um acidente. Depois de conseguirem seu objetivo, o casal de amantes leva uma vida difícil entre as suspeitas da justiça e as ameaças de chantagem feitas por um primo da vítima. Um dia eles sofrem um acidente de carro. Cora morre. Todas as suspeitas recaem sobre Frank, que é acusado e condenado à morte.

Chenal impregnou seu filme de um clima sensual e lúgubre em que a paixão adúltera se mistura com a fatalidade para traduzir o mistério desse casal de amantes, inocentado pelo assassinato que cometeu e separado por uma morte acidental, que levará o homem  a ser condenado por um crime que não ocorreu. Simon encarna o marido de Corinne Luchaire, que nos deixou o seguinte testemunho: “Como marido, ele tinha naturalmente o direito, bem entendido sob  os refletores, a algumas familiaridades. Numa cena, ele devia me abraçar pela cintura. Era natural. Mas Michel Simon achou que este gesto era muito banal e não hesitou em me agarrar com uma certa violência e um aspecto verdadeiramente lúbrico”. Diga-se de passagem: Corinne não foi a única atriz que reclamou dos “avanços luxuriosos “ de Simon durante uma filmagem.

LA FIN DU JOUR (Dir: Julien Duvivier): Em um retiro de artistas, três velhos atores se confrontam: Raphael Saint-Clair (Louis Jouvet), antigo galã de sucesso, que perdeu sua fortuna no jogo; Gilles Marny (Victor Francen), ator estimado pelo seu talento mas que jamais conheceu o êxito (sua mulher foi seduzida por Saint-Clair e morreu em um acidente de caça, suspeitando-se de um suicídio); e Cabrissade (Michel Simon), um fracassado, que só conseguiu ser o eventual substituto de outros atores. Para manter sua reputação de Don Juan, Saint-Clair seduz Jeannette (Madeleine Ozeray), jovem empregada da casa, e quase a conduz ao suicídio, mas ela é salva por Marny. Cabrissade, incapaz de dizer um verso em uma representação em benefício do retiro, sofre um ataque cardíaco. Saint-Clair enlouquece.

Artistas idosos sem as luzes da ribalta, as lembranças que os deprimem, a amargura que atiça as rivalidades de outrora, os rancores e as mesquinharias senis exacerbando-se no ambiente fechado de um pensionato. Com esse assunto, Duvivier construiu um drama cruel e mórbido sobre o egocentrismo feroz dos velhos atores e a dificuldade de envelhecer, que traz a marca do seu pessimismo em relação ao gênero humano. Nesse meio avulta a figura imponente e egoísta de Saint-Clair, magnificamente vivido por Louis Jouvet, mas Michel Simon foi responsável pelo momento mais alucinante do filme, quando se esquece do texto na única oportunidade que teve de se realizar como ator e murmura: “Eu sou velho … Não sei mais … Perdão … Eu sou velho …”.

FRIC-FRAC (Dir: Maurice Lehmann e Claude Autant-Lara): O joalheiro Mercandieu (Marcel Vallée) tem três empregados: sua filha Renée (Helène Robert), seu guarda-livros, M. Blain (Réné Genin), e o jovem Marcel (Fernandel), por quem Renée se apaixonou. Um domingo, Marcel encontra no velódromo a prostituta  Loulou (Arletty) e seu amigo Jo (Michel Simon), um vadio. Marcel se encanta por Loulou e ela e Jo resolvem roubar a joalheria. Eles embebedam Marcel e o amarram num divã. Renée surpreende os dois ladrões e Marcel, libertando-se, vai socorrê-la. Mercandieu não fica sabendo de nada e Marcel  compreendendo que Loulou não pertence ao seu mundo, fica ao lado de Renée, pois é ela quem ele ama de verdade.

Um dos biógrafos de Michel Simon, Jacques Lorcey (Michel Simon, Un Sacré Monstre, Séguier , 2003) registrou: “Michel Simon é a verdadeira sensação de Fric-Frac … Estamos na presença de uma das mais prodigiosas encarnações de Simon, este artista sobrehumano, ao qual cometemos o erro de dar o título de comediante, porque ele foi antes de tudo um criador genial, constantemente inspirado. Como sempre, Simon não interpreta, ele vive. Sua identificação com Jo é total e ele dá a impressão de uma improvisação constante”. Fernandel  contou a dificuldade que ele tinha de se concentrar diante dele: “Simon hipnotizava seus parceiros tal como fazia com o público”.

O DEMÔNIO DE PARIS (Dir: Pierre Billon): Vautrin (Michel Simon), conhecido como “Trompe la Mort”, foge da prisão de Rochefort com um outro prisioneiro, Théodore Calvi (Marcel Mouloudji). Vautrin assume a identidade do “abade Herrera, agente secreto do Rei de Espanha” e encontra o jovem Lucien de Rubempré (Georges Marchal), que arruinou e desonrou sua família em Angoulême. Ele impede Lucien de se suicidar e o introduz na alta sociedade parisiense. Enquanto Vautrin  põe mãos a obra pelo casamento de Lucien com Clotilde de Grandlieu (Gisèle Casadessus), o jovem se enamora de uma moça chamada Esther Gobseck (Madeleine Sologne). Descobrindo esta ligação, Vautrin torna-se conselheiro de Esther e se entende com ela, para arruinar o velho banqueiro Nucingen (Louis Seigner), que a deseja.

Inspirado no romance “Splendeur et misère des courtisanes”, o filme recria a atmosfera balzaquiana com todo o cuidado mas o espetáculo vale, sobretudo, pela interpretação de Michel Simon. Maquiavélico e insensível, Simon passou para  Vautrin a grandeza tenebrosa que Balzac lhe deu.

PÂNICO (Dir: Julien Duvivier): Um crime é cometido e o fotógrafo amador e misantropo Monsieur Hire (Michel Simon), que leva uma vida dupla mantendo um consultório de astrologia sob o nome de doutor Varga, é logo tido como suspeito pela polícia e por seus vizinhos. O verdadeiro assassino é Alfred (Paul Bernard), amante de Alice (Viviane Romance), que faz caírem as suspeitas sobre Hire, que está secretamente apaixonado por ela. O infeliz, encurralado pela multidão, refugia-se no telhado de uma casa, escorrega e morre. Ao lado do cadáver é encontrada sua máquina fotográfica com uma foto que denuncia o verdadeiro culpado.

É a história trágica de um homem solitário que não molesta ninguém mas guarda distância de seus semelhantes e por isso sofre o drama da incompreensão e da baixeza humana, tema que se encaixa perfeitamente no universo pessimista de Duvivier. A composição de Michel Simon é emocionante, principalmente quando exprime os tormentos “inconfessáveis” e a paixão erótica do seu personagem.

TRÁGICA INOCÊNCIA (Dir: Henri Decoin): O dr. Ancelin (Michel Simon), médico de província considerado medíocre, atropela, bêbado, um motociclista, e consegue disfarçar o seu homicídio involuntário. Assim, ele se reabilita a seus próprios olhos e segue seu caminho no crime, assassinando o amante de sua companheira, Madeleine (Jany Holt), e depois o colega que mais o desprezava; finalmente, empurra a própria Madeleine para a morte. Angustiado, Ancelin se denuncia à polícia mas o inspetor Chambon (Jean Debucourt) não acredita nele. Por despeito, Ancelin se suicida, deixando uma carta de confissão. Porém um gato empurra a carta  para a lareira e ela não será lida por ninguém.

Dessa história astuciosa , Henri Decoin, soube tirar um excelente partido e criar um suspense psicológico – a lenta alteração da razão de Ancelin – para o qual contribuiu poderosamente a fotografia noturna, obtida com o auxilio da perícia técnica do cinegrafista. O papel do assassino, que se angustia por não ter  sido levado a sério e reconhecido como um gênio do mal, caiu como uma luva para Michel Simon. Ele usou todos os recursos de grande ator para dar originalidade e intensidade dramática a esse curioso policial à francesa.

ENTRE A MULHER E O DIABO (Dir: René Clair): O velho professor Fausto (Michel Simon) recebe a visita de Mefistófeles (Gérard Philipe). Fausto se recusa a lhe vender sua alma em troca da juventude, o que, no entanto, Mefistófeles lhe concede, sem fazer nenhuma exigência. Fausto recupera  sua aparência de vinte anos de idade e encontra a cigana Margarida (Nicole Besnard), que se apaixona por ele. Porém ele se dá conta de que a juventude não vale nada sem dinheiro e assina o pacto com o diabo. Mefistófeles, que tomou as feições do velho Fausto, ensina-lhe a fabricar ouro e o introduz na corte do príncipe regente. Fausto recebe todas as honrarias e se torna amante da princesa. Quando Mefistófeles cobra a sua parte no acordo, Fausto não quer mais cumprí-lo.

O espetáculo propicia um confronto entre dois atores absolutamente fora de série: Gérard Philipe como um Fausto diabolicamente rejuvenescido e Michel Simon como um diabo truculento. As cenas nas quais Fausto ainda não está habituado como o seu corpo de jovem e conserva a maneira de andar e os tiques de um ancião ou aquelas cenas nas quais, até então desligado dos bens deste mundo, ele é subitamente possuido por um anjo do mal barbudo, debochado e concupiscente, elas bastam para demonstrar o talento extraordinário dos dois intérpretes.

LA POISON (Dir: Sacha Guitry): Paul Braconnier (Michel Simon) se apresenta como cliente a um grande advogado, Maître Aubanel (Jean Debucourt), dizendo que acabara de matar sua mulher, uma megera que bebe, o insulta constantemente, e quase nunca toma banho. Através das perguntas que lhe faz o causídico, para preparar sua defesa, Braconnier percebe qual é o método menos perigoso de cometer o crime. De volta ao lar, ele mata sua mulher, seguindo os conselhos involuntários do advogado. Defendido por Aubanel (na verdade por si próprio), Braconnier é triunfalmente absolvido.

Obra-prima do humor negro, amoral e anárquica, marcando o início de uma nova fase na carreira de Sacha Guitry. Ele sai de cena como ator e se afirma como autor, manifestando mais uma vez a sua verve inesgotável. A partir da cena irresistivelmente cômica da consulta ao advogado, o diretor faz uma  descrição satírica dos costumes provincianos, não poupando instituições como o casamento e a justiça – evidentemente – e a religião, haja vista a visita dos cidadãos ao cura, pedindo-lhe que providencie um falso milagre, para estimular o comércio. A interpretação fascinante de Michel Simon concorre em grande parte para o êxito do espetáculo.

LA VIE D‘UN HONNÊTE HOMME (Dir: Sacha Guitry): Albert Ménard-Lacoste (Michel Simon), industrial  respeitável, tem um irmão gêmeo, Alain, indivíduo boêmio e alegre, que reaparece após anos de ausência. Durante um encontro entre os dois, Alain morre de uma crise cardíaca. Albert assume a identidade do irmão, a fim de dar credulidade à sua própria morte, depois de ter legado sua fortuna para Alain. Ele espera, conservando as vantagens de sua posição burguesa, realizar enfim as fantasias e as aventuras que um homem respeitável é obrigado a recusar.

Sacha Guitry renova o tema clássico dos irmãos gêmeos que são confundidos um com o outro,  abordando-o de uma maneira cáustica e amarga. O enredo mostra dois seres solitários: Alain, em um estado de miserabilidade, mas contente com a vida divertida que levou, não se lastimando de nada; Albert, descontente com sua existência tediosa e hipócrita de homem honesto e invejoso do outro. Entrando na pele de Alain, Albert pensa em recomeçar sua vida, mas acaba “fugindo na noite”, desencantado com a natureza humana. Michel Simon compõe seu personagem duplo de maneira admirável: ele tem duas fisionomias, dois olhares, duas vozes e, poderíamos até dizer, duas almas. É verdadeiramente duas pessoas.

Sacha Guitry, ao qual Simon estava ligado por uma amizade profunda e uma admiração recíproca, prestou-lhe homenagem nos célebres créditos de La Poison: “Você é excepcional. Eu diria mesmo único … porque entre o momento em que você deixa de ser você mesmo e aquele em que interpreta o seu papel, é impossível ver a soldagem … Você possui esta virtude preciosa que não se adquire e que não é transmissível: o senso do teatro, quer dizer a faculdade de transmitir aos outros os sentimentos que você não sente”.

Michel Simon faleceu em 30 de maio de 1975 no Hospital Saint-Camille de Bry-sur-Marne , vítima de uma embolia, aos 80 anos. Em 9 de janeiro de 1977, seus herdeiros puseram à venda em Genebra sua coleção fabulosa de relógios antigos  e, alguns meses mais tarde, seu imenso “museu erótico”, contendo  mais de 20 mil fotografias e muitos objetos e filmes obscenos.

2 Responses to “MICHEL SIMON”

  1. Nossa, o brilhante Simon esperou apenas dois dias após meu nascimento para partir de vez. Mas sua obra magnânima sempre estará presente. Brilhante artigo, AC!

  2. Interessante a afinidade do Michel Simon com muitos dos personagens que interpretou.

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