JOÃO VILLARET

julho 10, 2019

Ele foi uma das maiores figuras do teatro e do cinema português, apresentando-se também em boates, rádio e televisão (onde costumava ser acompanhado ao piano pelo seu irmão Carlos Villaret). Ator e declamador dotado de uma sensibilidade e intensidade de expressão notáveis, dominou admiravelmente a difícil arte de recitar poesia. “Não digo versos; procuro reproduzir o momento de angústia, de alegria, de revolta que o poeta sentiu ao escrever o seu poema. Recitando, encontro a plena libertação, pois dou-me esse infinito gosto de interpretar aquilo que amo e que me tocou profundamente”.

João Villaret

João Henrique Pereira Villaret (1913 – 1961) nasceu em Lisboa, filho do médico Frederico Villaret e de D. Josefina Gouveia da Silva Pereira. A vocação artística manifestou-se nele em tenra idade, mas não sem se deparar com a incompreensão da família e depois da diretora do Anglo-Portuguese College, que resolveu excluí-lo, na última hora, de uma récita escolar,  alegando total falta de jeito para representar o papel que lhe fôra atribuído.

Concluída a instrução primária, ele ingressou no Liceu Passos Manuel, onde teve, por sorte, uma professora, D. Amália, que reconheceu sua capacidade ao ouví-lo ler Os Lusíadas. Em 1928, ainda antes de completar quinze anos de idade, tomou a decisão de concorrer ao curso de representação dramática do Conservatório Nacional de Lisboa, onde se diplomou em julho de 1931. Em outubro, foi convidado a ingressar na companhia Rey Colaço-Robles Monteiro (Amélia Rey Colaço e seu marido Robles Monteiro), concessionária do Teatro Nacional (então denominado Almeida Garrett) e estreou no palco em 16 de outubro de 1931 na peça Leonor Teles de Marcelino Mesquita, interpretando o papel do cronista Fernão Lopes, contracenando com Palmira Bastos, Raul de Carvalho e Antônio Pinheiro.

João Villaret

Villaret permaneceu nessa companhia até 1944, atuando em uma quantidade enorme de espetáculos dos mais variados autores (v. g. Ciclone de Somerset Maugham; Frei Luis de Souza de Almeida Garrett, Guerras do Alecrim e da Manjerona de Antonio José da Silva, o Judeu; Auto da Barca do Inferno e Todo Mundo e Ninguém de Gil Vicente; A Ceia dos Cardeais de Julio Dantas; A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho; Maria Stuart de Friedrich Schiller; o Conde Barão de Ernesto Rodrigues; Sonho de Uma Noite de Verão de William Shakespeare; A Madrinha de Charley de Brandon Thomas; Electra e os Fantasmas de Eugene O’Neill; As Sabichonas de Molière).

João Villaret

Em 1939, Villaret partiu com a companhia para o Brasil em uma temporada em São Paulo e Rio de Janeiro, encenando no Rio: São João Subiu ao Trono de Carlos Amaro, O Segredo de Henry Bernstein, Topaze de Marcel Pagnol, Um Judeu de Raimundo Magalhães Junior; A Conspiradora de Vasco de Mendonça Alves. Em 1941, de volta a Portugal, Villaret fez um grande recital de poesia no palco do Teatro Nacional, obtendo enorme sucesso e ganhando fama como declamador. No mesmo ano, iniciou-se como ator de revista, tendo sido co-autor de algumas delas (v. g. A Nossa Revista em parceria com Maria Clementina; Diz-se por Música em co-autoria com Lucien Donnat).   Em 1942, ele acaba o ano no Teatro Avenida com a revista do empresário Rosa Mateus, Belezas de Hortaliça de Fernando Santos, Almeida Amaral e Lourenço Rodrigues. É um novo sucesso especialmente em um número evocativo de velhos êxitos da canção francesa em que Villaret piscava o olho para o público e cantava, em malicioso subentendido, “Aquele a quem dou tudo, tudo a sorrir, c’est mon homme, e a quem dou la chemise, se ele um dia ma pedir, c’est mon homme” (alusão  dissimulada a Salazar).

Em setembro de 1944, Villaret transferiu-se para o Teatro Trindade, seduzido pela companhia Os Comediantes de Lisboa, erguida por Francisco Ribeiro e Antonio Lopes, sem no entanto abandonar as revistas. A mais popular de todas foi Tá Bem Ou Não Tá? (Teatro Avenida, 1947), onde popularizou o Fado Falado, um recitativo sobre melodia de fado onde a letra, em vez de ser cantada, era declamada. Na Comediantes ele fez, entre muitas outras, as peças Miss Ba de Rudolf Besier; Fanny de Marcel Pagnol; A Mensageira dos Deuses de Jean Giraudoux; Pigmaleão de Bernard Shaw; O Urso de Anton Tchecov; Não o Levarás Contigo de Moss Hart e Kaufmann; O Cadáver Vivo de Leon Tolstoi; Casa de Boneca de Henrik Ibsen; Rebeca de Daphne du Maurier.

Em 1948, Villaret voltou ao Brasil integrando (com Irene Isidro, Ribeirinho, Antonio Silva, Saluquia Rentini, Carlos Alves e outros) a Companhia Portuguêsa de Revistas e Operetas do Teatro de Variedades de Lisboa, que apresentou as revistas Alto Lá Com o Charuto, Se Aquilo Que a Gente Sente (na qual Villaret interpretava o número “O Fantasma da Ópera” em que D. Carlos I, o velho rei assassinado, comenta a atualidade), Tiro-Liro-Liro, Tá Bem ou Não Tá e as operetas Nazaré e Ribatejo.

Além de atuar no teatro, Villaret executou vários recitais de poesia e até um programa na Rádio Globo PRE-3 intitulado Teatro do Sonho, revelando-se excelente rádio-ator ao lado de Maria Sampaio na peça Ciúmes de Amaral Gurgel. Nos seus recitais, Villaret declamava poemas em vários idiomas de autores de várias épocas como D. Diniz, Camões, Ovidio, Gonçalves Crespo, Eugenio de Castro, Catulo da Paixão Cearense, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Garcia  Lorca, Augusto Gil; Kipling; Antonio Lopes Ribeiro; Antero de Quental; Luis de Gongora; Fernando Pessoa; Miguel Torga, Augusto Gil, Antonio Boto; Mario de Sá Carneiro; Antonio Nobre etc.

A respeito de um de seus recitais, escreveu Bandeira Duarte, crítico do Diário da Noite, o seguinte: “Não foi apenas um artista que tivemos conosco no pequeno tablado da Casa do Estudante . Foi um conjunto de figuras dramáticas, uma para  cada número do programa. Nós o ouvimos de joelhos, porque é de joelhos que se ouvem as vozes como a sua. E aplaudimo-lo de pé porque é assim que se aplaudem os artistas de sua altura”.

Irene Izidro

Apenas para dar uma idéia do conteúdo das revistas e do seu êxito em nosso país, vejamos o que escreveu o comentarista de teatro de A Scena Muda, João José, na época: “A Companhia Portuguêsa de Revistas estreou no Carlos Gomes com grande successo. A revista Alto Lá Com o Charuto nada tem que justifique o título, mas agradou inteiramente a platéia que tem ido ao Carlos Gomes. O público divertiu-se bastante com Ribeirinho e seu tambor, João Villaret cantando “C’est mon homme” e Irene Isidro fazendo com graça muito especial o número Franklin de Oliveira. Os melhores números da revista são, indiscutivelmente, o baile regional “O Corridinho”, verdadeira maravilha de dinamismo, de exatidão, de perfeição coreográfica, bisado ruidosamente pela platéia; o “Fado Falado”, numa interpretação dramática de João Villaret, mestre da boa declamação; A Mulher dos Ruídos” por Irene Isidro; “Margarida vai à fonte”, em esplêndido arranjo orfeônico, também bisado; e “Drama de Amor, um engraçadíssimo “sketch” cine-teatral, cuja idéia é de ser facilmente  ser identificada pelos fãs do velho cinema no filme de Buster Keaton, Sherlock Junior, história de um operador cinematográfico que “entra” na tela para salvar a mocinha em perigo e para descobrir o criminoso, quando a projeção  já vai bastante avançada … Mas também foram engraçados esse dois artistas em outros números, inclusive no “travesti” das criadas. Ribeirinho é um primo-germano de Oscarito, possuindo mais ou menos os mesmos méritos histriônicos e a mesma escola de fazer rir. Carlos Alves, no “compère”, fez um esforço físico e artístico tremendo. Maria Adelina com uma linda cara de boneca; Saluquia Rentini, que se esforça para seguir os passos de Beatriz Costa; Eunice Colbert, muito bonita e elegante, lembrando a nossa Regina Maura de outrora; Virginia de Noronha, uma figura morena e simpática, também se destacaram no espetáculo. A fadista, Marcia Condessa, como as outras, que nos tem visitado. O tenor Domingos Marques, um Vicente Celestino lusitano … No intervalo, entre o primeiro e o segundo ato, Maria Sampaio fez um breve discurso em nome dos seus colegas da Companhia Portuguesa de Revistas, pedindo uma salva de palmas para David Serrador, o empresário que a trouxe ao Rio, para satisfação da colônia portuguêsa e da nossa platéia. Foi também aclamado o diretor da companhia, Sr. Piero e calorosas ovações foram feitas a Irene Isidro, João Villaret, Antonio Silva e Ribeirinho. Uma noite de sucesso. E o início de uma temporada que será sensacional.”

De volta a Portugal, em 1949, Villaret aparece na revista Feira da Avenida, a última a ser produzida por Piero, antes de fugir do país deixando sua empresa na falência.  E o ator-declamador volta a partir: recitais na Madeira, nos Açores e de novo no Brasil, onde expôs seu talento no Teatro Glória em Guitarras e Violões ao lado do cantor italiano Bonino, do imitador Carlos Gil, de Catalano e Jurema Magalhães. Depois, parte para uma tournée por Angola e Moçambique, que dura de julho a novembro de 195O. A poesia é agora o seu modo de vida primordial, com colossal sucesso, onde quer que atue.

Villaret, Samaritana Santos e Fernanda Montenegro em Está Lá Fora um Inspetor

Só regressa ao teatro em abril de 1951 com Está Lá Fora Um Inspetor de J. B. Priestley e logo depois com Andam Ciúmes no Ar de José Lopez Rubio, ambas encenadas no Teatro Avenida. Em novembro ele está no elenco que inaugura o Teatro Monumental com a opereta As Três Valsas de Albert Willemetz e Leopold Marchand. Em 1952, faz também a primeira revista desse novo teatro – Lisboa Nova, de Fernando Santos e Almeida Amaral, onde criará um outro número que se tornou célebre: “A Vida É Um Corridinho”. Ainda nesse ano interpreta, sempre no Teatro Monumental, O Homem Que Veio Para Jantar de Moss Hart e George Kaufman – e volta a partir para o Brasil.

Em 1952, Villaret assinou contrato com a Cia. Comédia Carioca, estreando no Teatro Serrador em Loucuras do Imperador de Paulo de Magalhães, tendo como companheiros de cena Fernanda Montenegro, Lucilia Peres, Samaritana Santos, Osvaldo Louzada, Idala Barros. Seguiram-se duas apresentações inesquecíveis: Le Roi David, no Teatro Municipal, salmo sinfônico de Arthur Honegger no qual Villaret era o narrador e Está Lá Fora Um Inspetor de J. B. Priestley, encenada no Teatro Serrador, na qual Villaret é o Inspetor Goole, acompanhado no elenco por Sadi Cabral, Fernanda Montenegro, Samaritana Santos, Osvaldo Louzada, Antonio Patino e Natalio Cruz. Nessa ocasião, o renomado ator trabalhou também na Boate Casablanca no espetáculo Como É Diferente o Amor em Portugal, produzido por Carlos Machado, tendo a seu lado Silvia Fernanda e Grande Otelo e no Teatro Follies em Carroussell de 1953, no qual participaram Colé, Nelia Paula e Anilza Leoni. Em dezembro de 1953, encanta a platéia do Teatro Municipal juntamente com outros dois grandes atores Sergio Cardoso e Jaime Costa em A Ceia dos Cardeais de Julio Dantas. Vilaret fez o Cardeal Gonzaga de Castro; Sergio Cardoso foi o Cardeal Montmorency e Jaime Costa o Cardeal Rufo.

Cena de A Ceia dos Cardeais

Dessa viagem trouxe o texto de uma peça  – Esta Noite Choveu Prata, de Pedro Bloch uma das representações mais marcantes de sua enorme versatilidade e que mais fascinou o público, interpretando três papéis distintos (um em cada ato): Francisco Rodrigues -comerciante português; Pedro Bonardi – músico italiano; e Camilo – ator brasileiro.

Em 1955 e 1956 continuou a fazer declamações no âmago das revistas como ocorreu em Melodias de Lisboa e Não Faças Onda, dois grandes sucessos. Em 1957, ele parte para uma excursão na Argentina, representando Esta Noite Choveu Prata em castelhano e, na viagem de regresso, passa vários meses no Brasil, fazendo recitais, televisão e também representações dessa mesma peça no Teatro Copacabana. No mesmo ano e no mesmo teatro, fez Ardèle ou le Marguerite de Jean Anouilh (traduzida por Elsie Lessa como É De Amor Que Se Trata) com Morineau, Delorges Caminha e Laura Suarez, repetiu Esta Noite Choveu Prata em uma só récita e participou de um espetáculo na Boite Beguin ao lado de Mimi Gaspar.  Em 16 de outubro de 1957, Villaret recebeu no Itamarati a insígnia da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.

Villaret em A Ratoeira

Em 1959, mais uma vez na sua pátria natal, ele atua na sua última revista – Champagne Saloio – no Teatro Variedades e interpreta Patate de Marcel Achard no Teatro Avenida. Em 1960, estréia a sua peça derradeira, A Ratoeira de Agatha Christie, no Teatro Monumental. João Villaret faleceu prematuramente no auge da glória  em Lisboa a 21 de janeiro de 1961.

No cinema, Villaret participou de 8 filmes de longa-metragem: Bocage / 1936 de Leitão de Barros no qual coube-lhe o papel do príncipe regente D. João (futuro rei D, João VI); O Pai Tirano / 1941 de Antônio Lopes Ribeiro, em uma breve aparição como um pedinte mudo; O Violino do João / 1944 de José Braz Alves no papel do russo Pedro Derminova; Inês de Castro / 1945 de Leitão de Barros, onde fez o bobo Martim; Camões/ 1946, também de L. de Barros, onde desempenhou o papel de outro rei, D, João III;Três Espelhos / 1947, co-produção luso-espanhola realizada por Ladislao Vajda, surgindo como o inspetor Moisés; Frei Luis de Souza / 1950 de Antônio Lopes Ribeiro, no qual interpretou o aio Telmo Pais; A Garça e a Serpente / 1952 de Arthur Duarte, como Cristovão de Miranda; e O Primo Basílio / 1950 de João Mendes, no papel do bom Sebastião. No documentário Mar Português / 1950 de João Mendes, recitou (em voz-off) poemas de Luís de Camões, Antônio Nobre, Guerra Junqueiro, Fernando Pessoa e Alberto Rebelo de Almeida.

Cena de Frei Luis de Souza

Jorge Leitão Ramos no seu Dicionário do Cinema Português 1895-1961 (Editorial Caminho, 2011), de onde colhí informações sobre as atividades de Villaret em Portugal, disse com toda razão que ele “era um gigante da arte de representar e nada do que fêz no cinema testemunha isso; porém creio que os papéis que lhe deram, salvo o de Telmo Pais em Frei Luis de Souza, não lhe permitiram grandes vôos.

4 Responses to “JOÃO VILLARET”

  1. Parabéns Mestre pelo texto mas confesso que de cinema português não conheco quase nada pois vejo filmes desde os anos 60 e observei que só foi com o advento do video e cd’s nos anos 90 é que conheci alguns filmes portugueses e nunca entendi bem porque o cinema portugues nunca foi explorado aqui no Brasil.
    abraço e continue com este trabalho de recuperação da memoria do cinema.

  2. De fato o cinema português poderia ter sido mais explorado no Brasil obviamente pela semelhança de idioma cpmp foram as excelentes comédias com Antonio Silva e Beatriz Costa que, aliás, se apresentaram nos nossos palcos com muito sucesso.Seus comentários são como sempre muito pertinentes. Um forte abraço.

  3. Pbrigado.Sempre aprendendo com eles.

  4. Seja sempre bem-vindo José.

Leave a Reply