OTTO PREMINGER II

janeiro 12, 2022

Em 1953 Otto Preminger fez sua estréia como produtor-diretor independente com Ingênua Até certo Ponto / The Moon is Blue, adaptação cinematográfica da peça de Hugh Herbert que havia dirigido na Broadway. Nos mesmos cenários Preminger filmou também uma versão alemã intitulada Die Jungfrau auf dem Dach com Johanna Matz, Hardy Krüger e Johannes Heesters nos papéis de Maggie McNamara, William Holden e David Niven. O filme foi desaprovado pelo Código Hays, órgão responsável pela autocensura de Hollywood e pela Legião Católica da Decência, mas Preminger decidiu lançá-lo assim mesmo. Sua rebeldia representou o início do fim do Código e ajudou Hollywood a se livrar dos seus valores antiquados.

Desde que assinou seu novo contrato com a Fox, Preminger evitou assumir algum novo compromisso, mas quando Zanuck chamou-o para dirigir O Rio das Almas Perdidas / River of No Return / 1954, ele gostou da história, aprovou a escolha dos dois atores principais (Robert Mitchum, Marilyn Monroe) e achou quer seria uma oportunidade de filmar em CinemaScope, formato no qual se tornaria um mestre. Após O Rio das Almas Perdidas, Preminger decidiu que nunca mais trabalharia como empregado de um estúdio e, de fato, até o final de sua carreira cinematográfica, ele só faria dois filmes para outro produtor.

 Sua trajetória fílmica a partir de então se dividiria em duas fases: a primeira, mais fértil artisticamente, vai de 1954 a 1965, incluindo os seguintes filmes, dentre os quais destaco como melhores aqueles que estão assinalados em negrito: 1954 – Carmen Jones / Carmen Jones. 1955 O Homem do Braço de Ouro / The Man with the Golden Arm; Seu Último Comando / The Court Martial of Billy Mitchell, drama biográfico sobre o julgamento do militar (Gary Cooper) que em 1925 denunciou o estado precário da Força Aérea americana e previu o ataque japonês de 1941 (Prod: Milton Sperling). 1957 – Santa Joana / Saint Joan, drama histórico baseado na peça de Bernard Shaw com Jean Seberg, como Joana D´Arc e Richard Widmark como Carlos VII). 1958 – Bom Dia Tristeza / Bonjour Tristesse. 1959 – Anatomia de um Crime / Anatomy of a Crime; Porgy e Bess / Porgy and Bess, drama musical baseado na ópera de George Gerswhin com Sidney Poitier e Dorothy Dandridge (Prod: Samuel Goldwyn). 1960 Exodus / Exodus, drama histórico sobre a fundação do Estado de Israel com roteiro abertamente creditado de Dalton Trumbo em um desafio à Lista Negra de Hollywood. 1962Tempestade sobre Washington / Advise and Consent. 1963 O Cardeal / The Cardinal, drama (indicado para o Oscar de melhor Filme) sobre a ascenção de um irlandês católico (Tom Tryon) do sacerdócio para o Colégio de Cardeais.  1965 – Primeira Vitória / In Harm´s Way, drama de guerra com John Wayne, Kirk Douglas, Patricia Neal, Tom Tryon, Jill Haworth, Paula Prentiss, Brandon de Wilde e participação de Dana Andres, Burgess Meredith, Franchot Tone, Henry Fonda, focalizando a Marinha e seus oficiais do ataque japonês a Pearl Harbor ao primeiro ano do envolvimento dos EUA no Segundo Conflito Mundial; Bunny Lake Desapareceu / Bunny Lake is Missing.

Dorothy Dandridge e Harry Belafonte em Carmen Jones

Carmen Jones. Drama baseado em um espetáculo musical da Broadway de Oscar Hammerstein II e não diretamente da ópera de Georges Bizet e as interpretações das melodias são mais jazzísticas do que líricas, muito embora os atores tivessem sido dublados por cantores líricos. A ação foi transposta do ambiente antigo de Sevilha para os EUA nos dias da Segunda Guerra Mundial, onde a intriga se desenrola não mais em uma fábrica de tabaco, mas em uma fábrica de paraquedas do Exército integrada somente por operárias negras e guarnecida por uma unidade militar também composta inteiramente por negros. Carmen ainda se chama Carmen e continua impetuosa e sensual, mas em vez de cigana vadia é uma operária relapsa; Don José (Harry Belafonte) é ainda um cabo do exército, porém com o nome de Joe; e o toureiro Escamillo torna-se um campeão de boxe chamado Husky Miller (Joe Adams).  Preminger mantém o espírito da ópera trágica e ardente de Bizet, aproveita com discernimento a música maravilhosa do compositor francês e as letras e canções de Hammerstein, e faz uma utilização audaciosa do CinemaScope contando com uma fotografia em cores soberba de Sam Leavitt / Albert Myers, devendo ser mencionada ainda a atuação de Dorothy Dandridge (indicada para o Oscar de Melhor Atriz) e a abertura bem moderna de Saul Bass.

KIm Novak e Frank Sinatra em O Homem do Braço de Ouro

O Homem do Braço de Ouro. Drama baseado em um romance de Nelson Algren, contando a história dolorosa de Frankie Machine (Frank Sinatra), croupier de um cassino clandestino de Chicago, que luta com todas as suas forças para renunciar ao vício da heroína. Após uma estadia de seis meses em um centro de desintoxicação, ele decide mudar de vida, tornando-se baterista em um grupo de jazz. Sua esposa Zosh (Eleanor Parker) foi vitimada em um acidente de carro ocasionado por Frankie e não pode caminhar. Tomado por um sentimento de culpa, ele não ousa abandoná-la, embora se sinta atraído por Molly (Kim Novak), uma dançarina de boate que lhe dá apoio moral. Aborrecimentos com a polícia e com os traficantes reconduzem-no ao antigo vício. Zosh, que se finge de paralítica para manter o marido sob seu controle, mata acidentalmente o fornecedor de entorpecente Louie (Darrin McGavin) e Frankie é suspeito do crime. Ele se refugia no apartamento de Molly, que o tranca em um quarto e consegue desintoxicá-lo. Zosh, interrogada pela polícia, sentindo-se desmascarada, se atira do alto de um prédio. Frankie poderá então refazer sua vida com Molly. Preminger conduz a narrativa em um ritmo vivo, forjando cenas excitantes como aquele em que ele estende o braço para que lhe seja aplicada a droga ou as cenas no quarto de Molly onde ele se isola na sua tentativa de vencer sua dependência. O caráter trágico do enredo é acentuado pelos cenários tristes e miseráveis de Joseph C. Wright, pela fotografia fortemente contrastada de Sam Leavitt, pelo tema musical de Elmer Bernstein e pela abertura criativa de Saul Bass. Sinatra é um intérprete espantoso nas suas crises de delírio, seus sofrimentos e seus gritos quando é privado do entorpecente. Sinatra, Joe Wright e Bernstein foram indicados para o Oscar.

Jean Seberg, David Niven e Deborah Kerr em Bom Dia, Tristeza

Bom Dia, Tristeza. Adaptação do best seller de Françoise Sagan relatando em flashbacks o drama de Cécile (Jean Seberg), jovem mimada que vive uma vida livre e dissoluta na companhia do pai viúvo, Raymond (David Niven), e de uma das namoradas dele, Elsa (Mylène Demongeot), na “Côte d´Azur”. Suas existências superficiais em busca de prazer são ameaçadas até que a chegada de Anne (Deborah Kerr), amiga da ex-mulher de Raymond reaparece. Quando Raymond propõe casamento a Anne, Cécile percebe que sua vida vai mudar por completo e, para se libertar da futura madrasta, arma uma intriga, usando seu namorado Philippe (Geoffey Horne) e Elsa, ocasionando uma tragédia. Preminger teve a idéia inteligente de usar a fotografia em preto e branco para mostrar o tempo presente triste em Paris, passado quase todo nos bistrôs e nas caves, e o technicolor para exprimir o passado alegre na Riviera Francesa. Também arguta foi a utilização da música de Georges Auric e a aparição discreta de Juliette Greco em uma boate cantando “Bonjour Tristesse” e suscitando as memórias de Cécile.  Estas se encerram com as lágrimas escorrendo pelo seu rosto enquanto ela o cobre de creme após mais uma noitada de vida falsa, mas agora angustiada pelo remorso e com um sentimento de tristeza que não a deixará jamais. Notável a abertura de Saul Bass, onde as pétalas de uma flor se transformam em lágrimas.

James Stewart e Ben Gazarra em Anatomia de um Crime

Anatomia de um Crime. Drama de tribunal passado em uma pequena cidade do Michigan, onde o advogado Paul Biegler (James Stewart), ex-promotor público que perdeu sua reeleição, assessorado por seu colega alcoólatra Parnell McCarthy (Arthur O´Connell) e sua secretária sarcástica Maida (Eve Arden), aceita a defesa do tenente Frederick Manion (Ben Gazarra), soldado arrogante acusado da morte de um homem que, segundo ele alega, violentara sua mulher, Laura (Lee Remick). Depois de uma verdadeira batalha judicial, Biegler obtém sua absolvição usando o argumento do “impulso irresistível”. Embora longo e muito dialogado o espetáculo mantém a atenção do princípio ao fim graças ao interesse do assunto versando sobre tema sexual, ao valor dos intérpretes, à boa fotografia de Sam Leavitt, à música maravilhosa de Duke Ellington e principalmente à habilidade diretorial de Preminger, valendo mencionar ainda a abertura como sempre soberba de Saul Bass com aquele corpo quebrado. O filme, indicado ao Oscar, faz uma autópsia do sistema judiciário americano, suscitando questão importante como a fragilidade de uma justiça para a qual não existe uma verdade objetiva. E contém ainda um tema secundário: a vitória pessoal do trio do escritório: Biegler retoma seu gôsto pela advocacia, McCarth para de beber e Maida fica feliz em ter ajudado os dois. Houve indicações ao Oscar também para James Stewart (Melhor Ator), Arthur O´Connell e George C. Scott, que faz o papel do promotor público (Melhor Ator Coadjuvante), Sam Leavitt (Melhor Fotografia em preto e branco), Wendell Mayes (Melhor Roteiro Adaptado) e Louis R. Loeffler (Melhor Montagem).

Cena de Exodus

Exodus. Drama histórico grandiloquente (e com evidente parti pris), baseado no livro de Leon Uris sobre a criação de Israel, com roteiro de Dalton Trumbo, ousadamente creditado em um desafio à Lista Negra de Hollywod.  O filme acompanha a aventura do navio Exodus que conduz refugiados para a nova pátria, a oposição entre dois movimentos judeus, um pacifista (o Hagana), outro terrorista (o Irgun), a luta contra os ingleses e o início do conflito com os árabes. Preminger conduz o espetáculo com muita segurança, abordando com inteligência cinematográfica tanto as cenas de ação política ou de violência quanto as cenas românticas (entre Ari Ben Canaan / Paul Newman e Kitty Fremont / Eva Marie Saint). Ele como sempre emprega a tela larga de maneira admirável, notadamente nas cenas com muitos figurantes e mantém o espetáculo em constante excitação. Ernest Gold ganhou o Oscar de Melhor Música e Sal Mineo e Sam Leavitt foram indicados respectivamente para o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Fotografia em cores.

Charles Laughton e Walter Pidgeon em Tempestade sobre Washington

Tempestade sobre Washington. Drama político baseado em um romance de Allen Drury, ganhador do Pulitzer Prize, descreve com lucidez e sob forma de reportagem o desenrolar da nomeação de um Secretário de Estado, Robert Leffingwell (Henry Fonda), que deve ser sabatinado pelo Senado.  Os inimigos do candidato, tendo à frente um velho senador reacionário da Carolina do Sul, Seabright Cooley (Charles Laughton), tentam desacreditá-lo, acusando-o de ter pertencido a uma célula comunista. Preminger apresenta uma reflexão amarga e desiludida sobre a mecânica do poder e a manipulação política nos Estados Unidos, penetrando no interior do Capitólio para  mostrar com força dramática as maquinações que são tramadas nos seus corredores – incluindo campanha de difamação, falsos testemunhos, barganhas e chantagem – que podem levar até à morte. O cineasta mantém o filme permanentemente tenso até o final surpreendente apoiado por uma equipe técnica competente e pelo elenco de grandes atores veteranos (além de Fonda e Laughton, Walter Pidgeon, Peter Lawford, Gene Tierney, Franchot Tone, Lew Ayres, Burgess Meredith).

 

Tom Tryon e John Huston em O Cardeal

O Cardeal. Drama de dimensão épica baseado no romance de Henry Morton Robinson acompanhando o caminho espiritual de Stephen Fermoyle (Tom Tryon) que, no momento de sua nomeação como Cardeal em 1939, lembra-se das etapas principais de sua vida, passando por problemas dentro e fora da Igreja desde sua ordenação como padre em 1917. Este itinerário engloba uma vasta quantidade de espaços, de experiências, de conflitos históricos e particulares  – v. g. além de Roma, episódios em Boston, com o problema familiar de sua irmã ( Carol Lynley) querendo casar-se com um rapaz  judeu e se tornando mãe solteira;  no Canadá, com o padre Halley em estado terminal; em Viena, com o quase romance – quando provisoriamente secularizado – com uma moça austríaca sua aluna, Annemarie (Romy Schneider); na Georgia, com a defesa do padre negro  (Ossie Davis) e a Ku-Klux-Khan; novamente em Viena com o Cardeal Innitzer (Josef Meinrad) e os nazistas – , sem que esta constante deslocação no espaço e no tempo prejudique a unidade narrativa. Preminger expõe os fatos objetivamente, mostrando virtudes e defeitos da Igreja, em um estilo visual composto por belas composições pictóricas e seus famosos planos longos enquanto uma música linda de Jerome Moross fornece um clima solene à narrativa. Em papéis coadjuvantes vemos o diretor John Huston e dois ex-galãs de épocas distintas, Tullio Carminatti e Raf Vallone. Preminger recebeu sua segunda indicação ao Oscar de Melhor Direção e John Huston, Leon Shamroy, Lyle Wheeler, Louis R. Loeffler e Donald Brooks também foram indicados respectivamente para Melhor Ator Coadjuvante, Fotografia, Direção de Arte, Montagem e Figurinos.

Carol Lynley em Bunny Lake Desapareceu

Bunny Lake Desapareceu. Drama psicológico e de mistério tendo como ponto de partida o desaparecimento de uma menina, Bunny Lake, filha de uma mãe solteira, Ann Lake (Carol Lynley), que vive sob o domínio afetivo de seu irmão Stephen (Keir Dullea). A Polícia inicia uma investigação, mas o tenente Newhouse (Laurence Olivier) não encontra nenhum traço da criança. O policial segue várias pistas falsas encontrando tipos excêntricos (interpretados pelos atores veteranos britânicos Noel Coward, Martita Hunt, Finlay Currie) e acaba se perguntando se a menina realmente existe. Progressivamente começamos a duvidar dos personagens. Anna Lake é louca? E o irmão? Qual é a dele? O suspense vai crescendo até um final inesperado evocando de modo sutil um assunto tabu. Um dos pontos altos do filme é a fotografia em preto e branco (Denys Coop) das locações e interiores de Londres, sobressaíndo a sequência do hospital de bonecas no porão com Ann segurando uma lamparina de óleo. Outros  trunfos da realização são a partitura de Paul Glass, apresentada de um modo inventivo pelo diretor e a participação de Laurence Olivier, compondo com incomparável destreza o papel do inspetor gentil  e metódico que conduz a apuração dos fatos.

A segunda e derradeira fase da trajetória fílmica de Otto Preminger a partir de 1954 é um período de declínio criativo e comercial e vai 1967 a 1979, incluindo os seguintes filmes: 1967 – O Incerto Amanhã / Harry Sundow. 1968 – Skidoo Se Faz A Dois / Skidoo. 1970 – Dize-me Que Me Amas / Tell Me That You Love Me, Junie Moon. 1971 – Amigo É Pra Essas Coisas / Such Good Frends. 1975 – Setembro Negro / Rosebud.1979 – O Fator Humano / The Human Factor.

Este final de carreira melancólico e seu comportamento intimidativo em relação às suas equipes especialmente atores com menos experiência foram os pontos fracos do percurso cinematográfico de Otto Preminger porém, pelo conjunto de seu legado artístico como diretor e seu pioneirismo como produtor independente e corajoso merece ser sempre lembrado como um grande cineasta.

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