DIRETORES TALENTOSOS DEVOTADOS AO FILME B AMERICANO

março 24, 2022

Hollywood sempre fez filmes de orçamento baixo, mas a designação “B” se originou nos anos 30 com o incremento do programa duplo. Este consistia em um filme principal classe A e um filme mais barato classe B, ou em dois filmes de orçamento médio, ou mesmo em dois filmes B, acompanhados por um cine-jornal, um curta-metragem (que podia ser um desenho animado ou nos gêneros comédia, musical, esportivo, turístico, curiosidades etc.) e um ou dois trailers.

Os filmes A eram realizados com orçamentos de aproximadamente 400 mil dólares ou daí para cima (prestige pictures ou specials) e astros que atraíam um vasto público. Duravam 90 minutos ou mais e seus organogramas de filmagem permitiam a realização de ensaios e retaques. Os filmes B custavam entre 50 e 200 mil dólares e empregavam artistas com poder de atração moderado, questionável ou desconhecido. O tempo de projeção variava normalmente entre 55 e 70 minutos e a filmagem comumente não ultrapassava três semanas.

As grandes companhias adotavam uma política de preços diferençados: percentagens sobre a renda da bilheteria para os filmes A e aluguéis fixos para os filmes B. Ao contrário do ocorria com os filmes A, sempre imprevisíveis, os produtores podiam predizer com muita exatidão o montante das receitas que os filmes B podiam gerar e assim planejar os custos de produção de acordo com as receitas. Se a produção A de uma temporada não obtivesse o sucesso esperado, um estúdio podia contar com os lucros de seus filmes B para não ficar no vermelho. Os filmes B eram lançados nos cinemas de segundo lançamento situados nos bairros. No meu livro A Outra Face de Hollywood: Filme B (Ed. Rocco, 2003) abordo com mais extensão o assunto, mas para este artigo bastam estas informações.

Durante muitos anos os filmes B foram desprezados pelos críticos por terem sido necessariamente baseados em fórmulas e feitos apressadamente com orçamentos pobres, porém esta é uma noção muito simplificada. Com sua produção prolífica, foram eles que lubrificaram os mecanismos da produção, distribuição e exibição, permitindo que estes três ramos da indústria funcionassem regularmente e, de uma maneira geral, serviram como campo de treinamento e experimentação para os novos talentos, surgindo entre eles algumas obras de grande valor artístico.

Para se reconhecer o estilo de um filme B, é necessário compreendê-lo nos seus próprios termos, e não em termos do filme A. Os diretores do filme B dispunham de pouco tempo para a inspiração e a invenção. Raramente podiam preparar a filmagem, trocar idéias com o cenógrafo, fotógrafo ou atores, e revisar o roteiro. Eles usavam cenários mínimos ou singelos e muitas tomadas de arquivo. Os objetos de decoração mais luxuosos eram os que havia sobrado de produções A anteriores. Ocasionalmente, alguns diretores mais criativos compensavam parcialmente a pobreza de recursos e a pressa através da artisticidade da iluminação em chave baixa. Os filmes B condensavam um número enorme de acontecimentos em cinco ou sete rolos, excedendo a quantidade de ocorrências encontradas em um filme A de nove rolos ou mais. Esta narrativa compacta e o rito mais rápido dava-lhes uma qualidade “frenética” que o filme A, mesmo quando orientado para a ação, não possuía.

O fato de que muitas unidades B tivessem desfrutado de uma larga margem de autonomia, mostra que os estúdios, depois de certo tempo, passaram a encarar o filme B de um modo diferente. Os estilos criativos de alguns diretores e fotógrafos começaram a ser vistos como um meio de adicionar qualidade à produção B sem aumento de custos.

Todavia, a possibilidade de um diretor emergir da produção de um grande estúdio para um filme A era muito menos provável do que o inverso, um declínio para a Poverty Row, termo geralmente usado para designar uma área geográfica determinada de Hollywood (Gower Street), onde estavam situados os estúdios mais pobres.

Alguns, no entanto, logo conseguiram ascender às produções A, consagrando-se como bons diretores (v. g. Anthony Mann, Fred Zinnemann. Jacques Tourneur, Mark Robson, Richard Fleischer). Outros bem-dotados (v. g. Joseph H. Lewis, Phil Karlson), tiveram as carreiras quase inteiramente dominadas pelos filmes B por falta de oportunidade ou ambição, porém souberam transformar as limitações orçamentárias em virtude.

Joseph H. Lewis (1907-2000) distinguiu-se sobretudo pela inteligência e originalidade na maneira de colocar a câmera e movimentá-la. Entre suas obras mais expressivas estão: Trágico Álibi / My Name is Julia Ross / 1945; Satã Passeia á Noite / So Dark the Night / 1946; Mortalmente Perigosa / Gun Crazy / 1950; Império do Crime / The Big Combo / 1955.

 

George Macready e Nina Foch em Trágico Alibi

Nina Foch em Trágico Alibi

 

TRÁGICO ÁLIBI.

Julia Ross (Nina Foch), americana desempregada em Londres, aceita a posição de secretária particular de Mrs. Williamson Hughes (Dame May Whitty), viúva rica que vive na companhia de seu filho, Ralph (George Macready). No seu primeiro dia no novo emprego Julia é drogada por Ralph e desperta em uma mansão cercada por um muro alto e um portão trancado. Seus pertences desapareceram e Mrs. Hughes e Ralph insistem que ela sofreu um colapso nervoso e não é Julia Ross, mas a esposa de Ralph, Marion, que Ralph assassinou. Eles pretendem matar Julia como se fosse Marion e fingir que ela se suicidou. Julia descobre o plano deles de forjar um álibi para Ralph e todas as suas tentativas de escapar são frustradas. Eventualmente, porém, o plano se desfaz. Julia é resgatada, a velha senhora presa e Ralph morre ao tentar fugir da polícia por um penhasco à beira-mar. Lewis conduz com aptidão técnica (dispondo da colaboração preciosa do fotógrafo Burnett Guffey) e inventividade este thriller psicológico gótico do tipo mulher em apuros, criando um clima genuíno de suspense e de mistério durante todo o desenrolar da narrativa. Nina Foch está perfeita como a vítima presa em uma situação aparentemente sem esperança e Macready marca bem sua presença como o criminoso desequilibrado com um pendor para canivetes.

 

Steven Geray em Satã Passeia à Noite

Steven Geray ( na extrema direita) em Satã Passeia à Noite

SATÃ PASSEIA À NOITE

O famoso detetive parisiense Henri Cassin (Steven Geray) tira suas primeiras férias em onze anos de trabalho. Em uma pequena pousada em St. Margot ele conhece e se apaixona por uma moça do campo, Nanette Michard (Micheline Cheirel). Embora Nanette esteja comprometida com Leon Achard (Paul Marion), sua mãe (Ann Codee) a convence a ficar noiva do próspero Cassin, apesar da relutância do pai (Eugene Borden). Na noite do noivado ela desaparece e aparece morta, estrangulada. Cassin desconfia que o assassino foi Leon, porém este também é encontrado morto. Ao lado do corpo de Leon, Cassin acha uma pegada da qual faz um molde de gesso. Porém a pegada não combina com o sapato de nenhuma pessoa da aldeia. Logo depois a mãe de Nanette recebe um aviso de que será a próxima vítima e é descoberta estrangulada. Cassin volta para Paris e verifica que a pegada é dele. Após fazer uma confissão à polícia, ele é examinado por um psiquiatra que o avalia como um esquizofrênico, que se torna criminoso em momentos de amnesia. Cassin foge e vai para St. Margot, onde tenta estrangular o pai de Nanette, mas é abatido pelos tiros do comissário de polícia que o seguira até ali. Drama criminal freudiano exposto concisa e conscienciosamente por meio de enquadramentos sofisticados, ângulos inclinados, imagens refletidas em janelas e espelhos, câmera alta, objetos em primeiro plano e sombras providenciadas pela iluminação de Burnett Guffey, criando-se um clima sinistro em contraste com a paisagem arejada e bucólica das cenas iniciais no campo. O sempre eficiente coadjuvante Steven Geray não desapontou no seu único papel principal em Hollywood, muito pelo contrário.

 

Cena de Mortalmente Perigosa

John Dall e Peggy Cummings em Mortalmente Perigosa

 

MORTALMENTE PERIGOSA

Bart Tare (John Dall)  é fascinado por armas de fogo desde menino. Em um parque de diversões itinerante, Bart é imediatamente atraído por Annie Laurie Starr (Peggy Cummings), uma bela artista que faz um número de tiro ao alvo. Ele a vence em um concurso de tiro, sendo contratado para formar uma dupla no espetáculo. Os dois se casam e, quando ficam desempregados, cometem uma série de roubos à mão armada. Procurados pela polícia, eles vão se esconder na cidade natal de Bart. Seus amigos de infância tentam convencê-los a se entregar, porém os dois fogem e se embrenham no pântano, onde são metralhados pelos policiais. O filme inclui-se na variante do drama criminal denominadas filmes de amantes fugitivos ou fora-da-lei e possui muitas características noir: mulher fatal agressiva, herói alienado e obcecado, paixão, violência, fatalismo. Os protagonistas de Lewis são unidos por estranha afinidade: a fascinação por armas de fogo e forte atração física. Como diz o dono do parque de diversões: “os dois se olham como um casal de animais selvagens”. Sob a influência de Annie Laurie, Bart envolve-se em uma vida de crimes e, apesar de seus conflitos de consciência, não condena ou abandona a companheira: “Não! Vamos ficar juntos! Como as armas e as munições ficam juntas”. O filme está cheio de cenas admiráveis – o roubo do revólver da vitrine da loja durante a chuva; o concurso de tiros no parque de diversões com seu simbolismo erótico; o assalto ao banco visto em um único plano-sequência filmado com a câmera colocada no assento traseiro do carro, fazendo-nos participar da ação; o roubo da fábrica de empacotamento de carnes com a fuga frenética através das carcaças de bois dependurados no teto enquanto o alarme não para de tocar; a separação dos amantes, cada qual dirigindo seu carro em direções opostas, para um imediato reencontro extático no meio da estrada; o desenlace trágico, nitidamente expressionista, no meio do nevoeiro -, todas expostas com impressionante economia visual e expressividade.

Richard Conte e Jean Wallace em Império do Crime

Richard Conte e Cornel Wilde em Império do Crime

IMPÉRIO DO CRIME

O tenente Leonard Diamond (Cornel Wilde) investiga obsessivamente as atividades criminosas de um gângster chamado Mr. Brown (Richard Conte). Susan Lowell (Jean Wallace), a amante de Brown, tenta o suicídio, porém é salva a tempo e levada para o hospital. Diamond ouve um murmúrio dela sobre Alicia (Helen Walker), a primeira mulher de Brown e testemunha importante. Os dois capangas do gângster, Fante (Lee Vav Cleef) e Mingo (Earl Holliman), arrombam a porta do apartamento de Diamond e atiram, mas só conseguem matar Rita (Helene Stanton), uma dançarina que às vezes passava a noite com o detetive. Susan lê a notícia da morte de Rita, decide cooperar e Brown é preso. A primeira cisa que chama atenção neste filme de gângster é a mistura de sexo e violência, também notada em Mortalmente Perigosa. Primeiramente, a perversidade sexual no relacionamento entre Susan e Brown, bem representada por aquela cena em que ele acaricia os ombros dela e vai descendo pelo seu corpo até sair do quadro enquanto vemos a expressão de prazer no rosto da mulher. Depois, a união aparentemente homossexual entre Fante e Mingo e mesmo o “namoro” entre Diamond e Rita, também marcado por forte atração, puramente sensual. Os exemplos de violência são ainda mais numerosos: a tortura de Diamond com o som altíssimo do rádio no seu ouvido; a bomba que Brown deixa estourar nas mãos de seus dois capangas; e a eliminação de McClure (Brian Donlevy), um dos pontos altos da direção. Nesta cena memorável, McClure, o segundo no comando da organização, atrai Brown até o hangar do aeroporto secreto, pensando que os dois capangas estão trabalhando para ele e vão matar Brown. Acontece que os pistoleiros apontam suas armas para McClure, em vez de Brown. Procurando refúgio junto à parede, McClure pede misericórdia. Brown arranca seu aparelho de surdez e diz: “Vou lhe fazer um favor. Você não vai ter que ouvir os tiros”. A morte de McClure é então descrita do ponto de vista da vítima e nós vemos apenas os clarões das rajadas silenciosas das metralhadoras. A fotografia noire de John Alton é extraordinária, fortalecendo o tom dark: sombras pesadas, figuras em silhueta contra o nevoeiro. mãos e rostos dificilmente visíveis na escuridão, raios de luz espetando os personagens – como aquele farol que Susan aponta na direção de Brown, para facilitar seu aprisionamento.

 

 

Phil Karlson (nascido Philip N. Karlstein; 1908 – 1985) especializou-se nas cenas de ação brutais e no uso eficiente do close-up para causar impacto nos momentos apropriados. A exposição de suas narrativas é sempre em um estilo seco e objetivo. Entre seus melhores filmes destacam-se: Os Quatro Desconhecidos / Kansas City Confidential / 1952; Escândalo / Scandal Sheet / 1952 e A Morte Ronda o Cais / 99 River Street / 1953.

 

John Payne e Preston Foster em Os Quatro Desconhecidos

John Payne e Lee Van Cleef em Os Quatro Desconhecidos

OS QUATRO DESCONHECIDOS

Desgostoso com os escassos proventos de sua aposentadoria e por ter sido compelido a requerê-la, Timothy Foster (Preston Foster), um policial de Kansas City, faz chantagem com três delinquentes – Harris (Jack Elam), Kane (Neville Brand) e Tony (Lee Van Cleef) -, obrigando-os a executar seus planos para o assalto a um carro-forte. Foster mantém o anonimato e os homens usam máscaras para que um não conheça a identidade do outro. Os ladrões utilizam uma van na fuga. Os policiais prendem o motorista de um carro idêntico chamado Joe Rolfe (John Payne), interrogam-no brutalmente sobre o roubo, e depois o soltam, ao verificarem o engano. Rolfe obtém uma pista e chega à presença de Foster, desmascarando-o. Foster e Rolfe são homens amargurados. Foster define claramente os motivos pelos quais se tornou um criminoso: aposentou-se com proventos irrisórios, após passar vinte anos combatendo o crime, “vendo os bandidos subindo na vida”. Agora, quer uma compensação e vingança, inconformado com seu afastamento compulsório. Rolfe, por sua vez, foi formado pela guerra. Acusado injustamente do assalto, interrogado sob as luzes fortes da delegacia, ouve o comentário do Promotor Público sobre sua pessoa para um dos guardas: “Ele ganhou uma Medalha de Bronze e uma de Púrpura”.  E responde rapidamente: “Tente comprar uma xícara de café com elas”, falando por todos os veteranos que voltaram para casa e não conseguiram uma condição social satisfatória. Tal como os heróis noir, Rolfe é vítima do destino. Ao ser confrontado por ele, Harris lhe diz: “Não tínhamos nada contra você. Nem o conhecíamos. Apenas aconteceu assim”. Karlson teve em mãos uma história original e soube conduzí-la com o vigor exigido, explorando muito bem os primeiros planos como aquelas cenas em que Foster contrata seus cúmplices e nas de violência de uma maneira geral.

John Derek, Donna Reed e Broderick Crawford (de costas) em Escândalo

Broderick Crawford em Escândalo

ESCÂNDALO

Após uma discussão com Charlotte (Rosemary DeCamp), a esposa que abandonou anos atrás, Mark Chapman (Broderick Crawford), editor de um jornal de escândalos, agride-a, ela cai de mau jeito e morre. Steve McCleary (John Derek), jovem repórter discípulo de Chapman, e sua colega, Julie Allison (Donna Reed), cobrem o caso e, graças a um velho jornalista alcoólatra, Charlie Barnes, que vem a ser assassinado por Chapman, acabam encontrando as provas de sua culpabilidade. O filme contém dias ironias: um editor de publicação sensacionalista deixa seu principal repórter procurar um assassino, que vem a ser ele próprio; Chapman ensinou tão bem seu método de jornalismo investigativo (embora marrom) para McCleary, que o dedicado discípulo acabou se tornando instrumento de sua punição. O veterano homem de imprensa pode apenas observar com apreensão como a engrenagem que ele criou é manipulada pelo dinâmico pupilo e voltada contra si mesmo. A montagem concisa evidencia uma direção eficaz do princípio ao fim. Karlson soube também tirar bom partido dos detalhes e do jogo fisionômico dos intérpretes principalmente na cena da morte de Barnes, esta última agraciada por um belo contraste de luz e sombra.

Jack Lambert eJohn Payne em A Morte Ronda o Cais

Evelyn Keyes e John Payne em A Morte Ronda o Cais

 

A MORTE RONDA O CAIS

O ex-pugilista Ernie Driscoll (John Payne) dirige um táxi para sobreviver. Sua esposa, Pauline (Peggie Castle), é amante de Victor Rawlings (Brad Dexter) que acabara de roubar umas jóias. Rawlings vai com Pauline à loja de um receptador, Christopher (Jay Adler), para vender as jóias. Rawlings mata Pauine e esconde o corpo no táxi de Ernie. Com o auxílio de uma amiga, Linda (Evelyn Keyes), Ernie localiza o assassino e, mesmo ferido, consegue dominá-lo. A polícia chega a tempo de impedir que Ernie mate Rawlings de pancada. O que dá a qualidade noir ao espetáculo, além do tema do herói acusado injustamente, são as obsessões e as frustrações dos seus personagens, a confusão entre aparência e realidade, a amargura, o desespêro. Ernie queria ser um campeão, e o fato de não ter sido o deixa angustiado. Pauline trabalha em uma loja de flores e tem um problema semelhante. Na sua mente, casou-se com um pugilista, em vez de se dedicar à vida artística. “Poderia ter sido uma estrela”, lamenta. Linda e Rawlings também sonham com o sucesso. Linda julga-se uma grande atriz. Rawlings deseja partir para a França. Todos fracassam. Ernie diz a Pauline: “Uma chance para chegar no topo. É a coisa mais importante do mundo”. Esta é uma fantasia que o filme destrói. Linda e Ernie só adquirem direito a uma nova vida, quando reconhecem que suas fantasias são impossíveis de serem realizadas, quando aceitam seus limites. Karlson desenvolve a narrativa com agilidade artesanal, pontuando-a com momentos de ação tumultuosa e brutalidade.

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