O PEPLUM ITALIANO

maio 4, 2022

A partir do imediato pós-guerra e até meados dos anos sessenta, floresceu na Itália um gênero popular de muito sucesso, o peplum, que respondia às necessidades de evasão de um público traumatizado por cinco anos de miséria e que aspirava ao entretenimento.

Inscrito em uma antiguidade de fantasia ou em uma antiguidade greco-romana revisitada muito livremente, o peplum teve seus heróis musculosos – Ursus, Maciste, Hércules, Sansão etc. e seus especialistas: Riccardo Freda, Pietro Francisci, Sergio Corbucci, Vittorio Cottafavi, Duccio Tessari (este mais como roteirista). Sergio Leone estreou na direção com um deles, O Colosso de Rodes / Il Colosso di Rodi / 1960.

Peplum é a versão latinizada da palavra grega Péplos, que designa uma túnica sem mangas presa ao ombro por um broche ou uma fivela, usada por homens na antiguidade clássica. O vocábulo batizou o gênero cinematográfico que também foi chamado de filmes de saiote, épicos de toga (toga epics) ou fitas de espada e sandálias (sword-and-sandals flicks). Foram cerca de 180 filmes, formando um ciclo homogêneo que, apesar da qualidade discutível da maioria das obras, foi um dos mais apreciados, principalmente pelo público italiano, por mais de uma década.

Ao contrário do lugar-comum que circula frequentemente, os filmes desse ciclo não são derivados degenerativos das superproduções americanas. Sua história começa nos primeiros tempos do cinema mudo com os filmes históricos colossais de Mario Caserini (v. g. Os Últimos Dias de Pompéia / Gli ultimi giorni di Pompei / 1913), Enrico Guazzoni (v. g. Quo Vadis? / Quo Vadis? / 1913) Giovanni Pastrone (v. g. Cabiria / Cabiria / 1914) etc.  Em Quo Vadis?  Guazonni colocou em cena pela primeira vez Ursus (Bruno Castellano), personagem que foi o ancestral cinematográfico dos heróis musculosos do peplum italiano. Um ano depois, em Cabiria, Pastrone apresentou um novo superhomem, o gigante Maciste (Bartolomeo Pagano), que obteve enorme popularidade e série própria.

Cabiria

Apesar de alguma desaceleração no início dos anos vinte, os estúdios italianos continuaram a produzir numerosos filmes sobre a antiguidade. Diante da concorrência americana cada vez mais forte (v. g. Intolerância / Intolerance / 1916 de David Wark Griffith; Nero / 1922 de J. Gordon Edwards), os produtores recorreram às refilmagens (v. g. Messalina / Messalina / 1923 de Enrico Guazzoni, Quo Vadis? / Quo Vadis? / 1924 de Gabrielino D’ Annunzio e Georg Jacoby, Os Últimos Dias de Pompéia / Gli ultimi giorni di Pompei / 1925 de Carmine Gallone).

Apesar da utilização de uma antiguidade romana na propaganda, esta não foi considerado pelos dirigentes fascistas como um instrumento assaz poderoso para a mobilização nacional. De modo que, no cinema do regime, sobressaíram as comédias românticas de Mario Camerini (v. g.  Gli uomini, che mascalzoni! / 1932, Daro un milione / 1935, Os Apuros do Senhor Max / Il signor Max / 1937), os melodramas de Mario Soldati (v. g. Piccolo mondo antico / 1941, Malombra / 1942), os filmes de aventuras de Alessandro Blasetti (v. g. Ettore Fieramosca / Ettore Fieramosca / 1938; Romântico Aventureiro / Un’ avventura di Salvator Rosa/ 1939; A Coroa de Ferro / La corona di ferro / 1941). Eles foram os três realizadores mais significativos do período 1930-1940 do cinema italiano.

Entre 1929 e 1939 somente foi produzido um filme sobre a antiguidade: Scipião, o Africano / Scipione l’africano / 1937, superprodução destinada a celebrar a inauguração dos estúdios Cineccità, que era um reflexo um perfeito da política exterior do Duce. Depois da guerra, a indústria cinematográfica italiana, afetada pelo conflito mundial, se aproximou da realidade cotidiana e dos problemas sociais, surgindo o neorealismo. Porém, pouco a pouco os gêneros tradicionais foram reaparecendo: a comédia (v. g.  filmes de Totó), o melodrama (v. g. Não Desejar / Desiderio / 1946) de Marcello Pagliero, Roberto Rosselini), os filmes de aventura (v. g.  Águia Negra / Aquila nera / 1946 de Riccardo Freda), bem como os filmes sobre a antiguidade (v. g. Fabiola / Fabiola / 1949 de Alessandro Blasetti; Pompéia, Cidade Maldita / Gli ultimi giorni di Pompei / 1950 de Marcel L´Herbier, Paolo Moffa).

Estes dois filmes reabituaram o público ávido dos grandes espetáculos e prepararam o terreno para o advento do peplum, mas este ciclo de filmes sobre uma antiguidade greco-romana de fantasia ou revisitada muito livremente também ficou devendo muito à grande indústria cinematográfica de Hollywood. Com o aumento progressivo dos custos de produção dos filmes de grande espetáculo e a ameaça cada vez maior da televisão, os estúdios americanos decidiram rodar seus filmes épicos no exterior onde os impostos e o custo dos cenários, técnicos e figurantes eram mais baratos.

Cinecittà

De todos os estúdios europeus, o mais atraente era Cinecittà, fundada por Mussolini em 1936. Assim, a partir de 1950, a MGM se voltou para Roma, onde Mervyn LeRoy filmou uma nova adaptação cinematográfica do célebre romance Quo Vadis? de Henry Sienkiewicz com Robert Taylor, Deborah Kerr e Peter Ustinov. Os técnicos construíram cenários gigantescos e confeccionaram figurinos e acessórios diversos, produzindo um grande espetáculo, que ajudou a propulsionar mais do que nunca a produção de filmes italianos sobre a antiguidade (v. g. Spartaco / Spartaco /1952 e Teodora, Imperatriz de BIzâncio / Teodora, imperatrice di Bisanzio / 1953 de Riccardo Freda; A Rainha de Sabá / La regina di Saba / 1952 e A Invasão dos Bárbaros / Attila (no relançamento, Átila, Rei dos Hunos) / 1953, de Petro Francisci; Ulysses / Ulysse / 1954 de Mario Camerini).

Steve Reeves em As Façanhas de Hércules

Estas produções prepararam o terreno para o advento do peplum, cuja moda teve início com As Façanhas de Hércules / Le fatiche di Ercole / 1958 de Pietro Francisci, no qual o ex-Mister Universo norte-americano 1950, Steve Reeves, interpretava o semideus grego Héracles com o nome romano de Hércules. Filmadas em Dyaliscope e Eastmancolor as façanhas do filho de Zeus são uma coletânea de episódios mitológicos heterogêneos (o leão de Neméia, o touro de Creta e as Amazonas) misturados com aventuras extraídas de outras lendas como a expedição de Jasão e de seus Argonautas que partiram em busca do Velo de Ouro. Entretanto, o termo peplum só passou a ser usado após maio de 1962, quando foi usado por Jacques Siclier no seu artigo “L´Age du Peplum” publicado na revista Cahiers du Cinéma.

A fórmula funcionou maravilhosamente. Por um custo de 100 milhões de liras, o filme arrecadou quase 900 milhões de liras nas salas de exibição italianas, alcançando o mesmo sucesso no exterior. A realização de Francisci trouxe um novo frescor para o filme sobe a antiguidade, constituindo-se como um modelo, o peplum propriamente dito, que seria seguido nos anos seguintes.  Francisci e sua equipe (da qual fazia parte o então fotógrafo Mario Bava) repetiram a fórmula, novamente com Steve Reeves, em Hércules e a Rainha da Lídia / Ercole e la regina di Lidia / 1959.

A partir de 1960 houve uma mudança no gênero: Grécia e Roma tornaram-se reinos onde tudo era possível. Os roteiristas se permitiram liberdades cada vez mais ultrajantes com a verdade cultural. Os Filhos do Trovão / Arivano i titani / 1961 de Duccio Tessari é um exemplo desta tendência.

Nesta fase do ciclo, na qual predominam o ridículo e absurdo, um tema se tornou preponderante: as aventuras dos buoni giganti, heróís legendários e musculosos como Hércules, cuja popularidade fôra testada nos dois filmes de Pietro Francisci e continuou intacta em outros filmes, entre eles Hércules na Conquista da Atlântida / Ercole a la conquista di Atlantide / 1961 de Vittorio Cottafavi, espetáculo de tom cômico muito movimentado e com certa qualidade pictórica. Além de Hércules, os autores do peplum ressuscitaram os velhos personagens do cinema mudo, Maciste, Ursus e o bíblico Sansão (que fôra interpretado na cena silenciosa por Luciano Albertini, o rival mais temível de Bartolomeu Pagano) e introduziram outro gigante bíblico, Goliath (Golias).

A esta altura, os produtores perceberam que podiam fazer os filmes gastando menos dinheiro. Os orçamentos foram encolhendo e a qualidade das produções caiu fortemente. Por uma questão de economia, surgiu a prática de usar nos pepluns cenas de outros filmes semelhantes, no início apenas as cenas de grande figuração como cenas de batalha ou em arenas; mas aos poucos tal prática se generalizou e se ampliou. Procurando renovar o ciclo condenado a uma exaustão provável, os roteiristas inventaram histórias com tramas cada vez mais inconsistentes e incoerentes e, a fim de aplicar suas receitas em projetos que já haviam dado lucro, começaram a plagiar as intrigas dos filmes de sucesso da época (v. g.  Os Sete Gladiadores / I sette gladiatori / 1962 de Pedro Lazaga era refilmagem na moda peplum de Sete Homens e um Destino / The Magnificent Seven / 1960 de John Sturges; Maciste nas Minas do Rei Salomão / Maciste nelle miniere di re Salomone / 1964 de Piero Regnoli lembrava o filme americano de 1950 com Stewart Granger e Deborah Kerr.

Os plágios não se restringiram à simples cópia de sucessos comerciais cinematográficos. Os produtores passaram também a reutilizar estruturas pertencentes a outros gêneros: aventura, fantástico, ficção científica, western, filmes de catástrofe, de capa e espada ou com um sabor oriental. No campo do horror, por exemplo, sob a influência dos filmes de Mario Bava e das produções britânicas da Hammer, surgiu verbi gratia, Maciste contra o Vampiro / Maciste contro il vampiro / 1961 de Giacomo Gentilomo e Sergio Corbucci. Nos domínios da ficção científica, apareceu O Gigante de Metrópolis / l gigante di Metropolis / 1961 de Umberto Scarpelli e Mario Tota, no qual o herói enfrenta os robôs de uma sociedade futurista que tem o domínio da energia nuclear. a energia nuclear.

Como se não bastasse, vieram os cruzamentos, ou seja, confrontações improváveis entre os heróis (v. g. Ulisses contra Hércules / Ulisse contre Ercole / 1961 de Mario Caiano; Maciste contro Ercole nella valle dei guai / 1962 de Mario Mattoli) e teve até um o incrível Zorro contro Maciste / 1963 de Umberto Lenzi. Nos EUA o filme passou como Samson and the Slave Queen, Maciste virou Sansão e, como foi a versão americana que foi exibida aqui, o título do filme no Brasil foi Sansão e a Rainha Escrava. Outro encontro estapafúrdio ocorreu em um filme de Giorgio Capitani intitulado Hércules, Sansão, Maciste e Ursus, os invencíveis / Ercole, Sansone, Maciste e Ursus, gli invincibili / 1964, para o qual toda a turma do fisioculturismo foi convocada.

Filmes como estes acabaram por descredibilizar um gênero já bem desvalorizado por um punhado de produções medíocres e não ofereceram mais a rentabilidade dos filmes realizados no início do ciclo, que se extinguiu com uma coprodução italo- germânica-yugoslava, Massacre na Floresta Negra / Il massacro della foresta nera – Hermann der Cherusker – Die Schlacht im Teutoburger Wald / 1966, dirigida por Ferdinand Baldi e Rudolf Nussgruber.

Em Cinecittà, os operários do estúdio começaram a demolir as colunas dos templos e as escadarias dos palácios para construir cidades do Oeste e vários diretores do peplum se adaptaram ao western spaghetti, nova vaga do cinema popular italiano inaugurada por Sergio Leone em 1964.

FILMOGRAFIA

Como a filmografia do peplum é muito extensa, registro apenas os filmes no gênero dos cinco diretores mencionados no início deste post.

SERGIO CORBUCCI

1961 – Rômulo e Remo / Romolo e Remo. 1962 – O Filho de Spartacus / Il figlio di Spartacus.

VITTORIO COTTAFAVI

1958 – A Revolta dos Gladiadores / La rivolta dei gladiatori. 1959 – As Legiões de Cesar / Le legioni di Cleopatra. 1960 – Messalina, Vênus Imperial / Messalina, Venere imperatrice; Golias e o Dragão / La vendeta de Ercole. 1961 – As Virgens de Roma / Le vergini di Roma. Hércules na Conquista da Atlântida / Ercole ala conquista di Atlanta.

PIETRO FRANCISCI

1952 – A Rainha de Sabá / La regine i Saba. 1954 – A Invasão dos Bárbaros (no relançamento Atila, Rei dos Hunos / Attila. 1958 – As Façanhas de Hèrcules / Le fetiche de Ercole. 1959 – Hércules e a Rainha da Lídia / Ercole e la regina di Lidia. 1960 – O Cerco de Siracusa / L´assedio di Siracusa; Safo, a Vênus de Lesbos / Saffo, Venere di Lesbo. 1963 – Hércules, Sansão e Ulisses / Ercole, sfida Sansone.

RICCARDO FREDA

1953 – Spartaco / Spartaco. 1954 – Teodora, Imperatriz de Bizâncio / Teodora, imperatrice di Bisancio. 1960 – Os Argonautas / I giganti dela Tessaglia; Maciste no Imério Chinês / Maciste a la corte del Gran Khan. 1962 – Maciste no Inferno / Maciste all’ inferno.

DUCIO TESSARI

1961 – Os Filhos do Trovão / I titani / Arrivano i titani.

Outros realizadores do peplum: Ferdinando Baldi, Marcello Baldi, Mario Bava, Tanio Boccia, Carlo Ludovico Bragaglia, Alfonso Brescia, Guido Brignone, Mario Caiano, Carlo Campogalliani, Fernando Cerchio, Alberto de Martino, Giorgio Ferroni, Carmine Gallone, Giacomo Gentilomo, Sergio Grieco, Sergio Leone, Umberto Lenzi, Antonio Leonviola, Michele Lupo, Guido Malatesta, Antonio Margheriti, Domenico Paolella, Gianfranco Parolini, Viktor Tourjansky, Giuseppe Vari, Primo Zweglio.

Astros mais assíduos no peplum: Georges Marchal, Ettore Manni, Steve Reeves, Gordon Scott, Mark Forest, Richard Harrison, Peter Lupus, Gordon Mitchell, Reg Park, Brad Harris, Alan Steel (Sergio Conti), Kirk Morris (Adriano Bellini), Ed Fury, Dan Vadis, Roger Browne, Richard Lloyd.

One Response to “O PEPLUM ITALIANO”

  1. Apr3cie ou não, a capacidade produtiva italiana é impressionante. Espremiam um filão até não dar mais. Alguns títulos se sobressaem por uma incrível engenhosidade de realizadores como Mario Bava. Obrigado por mais um rico e agradável artigo.

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